quinta-feira, 29 de abril de 2010




Nothing man

* Por Marcelo Sguassábia

Na verdade, o que irritava demais era que o sujeito parecia uma caneta muito gasta e quase seca, de design ultrapassado, tampa mordida e serventia duvidosa até para a própria mãe, os irmãos e os vizinhos da frente que o ajudaram a criar.

Dava aflição e pena só de passar o olho no sempre esticado ser humano, mole ali no sofá mais mole ainda, feito boi na engorda – com a diferença que o quadrúpede, ao contrário dele, costuma passar a maior parte do tempo de pé. E não é mentira dizer que bastava terminar o almoço pro elemento já ir tratando de cavar espaço no bucho pra caber a janta, na adivinhação do que teria à mesa pra se refestelar até que não houvesse mais vaga disponível para um tremoço ou uma mísera azeitona sem caroço.

Com essa vida sem prestança o moço durou pouco sendo moço e logo logo rendeu-se ao definhamento, pelo uso muito continuado de certas partes do corpo e pelo desuso completo de outras. Ficou aquele velho que é ancião de tenra idade, acabado antes da hora, alvo de comentário e exemplo de mau exemplo. Do jornal só lia horóscopo, e nele se fiava mais que nos profetas do Antigo Testamento, mais do que no pronunciamento do presidente do Banco Central sobre a taxa de juros e mais até do que em fofoca de tia viúva – e dessas tinha duas que valiam por dúzias. Ô velhas mexeriqueiras, que quando apareciam com seus tupperwares lotados de biscoitos de nata traziam junto sacolas de injúrias e difamações sobre todo ser vivente da cidade, especialmente a parentada da zona norte. A sorte é que ambas, Aurora e Lélia, só muito de vez em quando surgiam e logo caíam fora após alguns jorros caudalosos de infâmia, deixando-o novamente às voltas com os botões do seu pijama.

“Esse cara aí é herdeiro de cartório”, diziam alguns à primeira vista, vendo aquele monumento à preguiça zapeando a tarde toda entre desenhos animados e alternando o trabalho das mandíbulas entre sacos de balas chita e bolinhos de chuva. E a chuva caía mansa como ele nas paragens que habitava, tão sem vontade de cair que em sua moleza o levava a meditar, pra descansar um pouco do estafante esforço de fazer coisa nenhuma.

* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”

2 comentários:

  1. Uma escolha que não abre espaço
    para arrependimentos, frustrações
    ou medo.
    Pensar e agir? Para quê?
    Respeito sua escolha e lá no fundo
    acho que muita gente queria viver assim...parasitando.
    Ótimo texto

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  2. Gostei bastante da sua avaliação da construção da obesidade. Assunto sério, mas aqui tratado com graça e bom-humor.

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