segunda-feira, 5 de abril de 2010




E da sentença não sobrou um vintém de esperança

* Por Eduardo Murta

Não perca o olhar sobre aquela casa em tons pastéis. É a número 3 da Rua Direita. A fachada em simplicidade franciscana imita o conjunto de moradas do lugar. Uma janelinha desprovida de tinta, em madeira, a porta baixa, e aquele símbolo reinando bem ao meio. Por lá o chamavam de Absoluto. Um círculo fechado e, de sua artéria central, partindo setas multidirecionais. Não há sinal de jardins, nem mesmo de cercas. Sequer fechaduras.

Contam que é assim desde meados do século passado, quando a primeira gente aportou pelos vales de Xonim de Baixo. Jeito nômade, o rio acabou por ancorá-los definitivamente naqueles planos em que montanhas e água embandeiravam as terras. E sob aquela atmosfera foram tecendo uma aura de mistério que os põe ainda agora sempre ao limite da dúvida: o que, de fato, se esforçariam em não revelar?

Ao sabor das lendas, a eles imputam de sacrifícios de virgens a adoração de pedras inanimadas e imolação sumária de negros que cruzassem desavisadamente seu território. Inspiravam calafrios. Não seria casual a escolha de manter o vilarejo à sombra soberana da lua. Nada se comprovou, mas vem à tona com freqüência a versão de que oficiais do governo encarregados de levar luz elétrica ao campo rumaram uma única vez até lá. E deles não mais se teve notícias.

Rumores, rumores, retrucaria Mano Gregório, uma espécie de líder espiritual da comunidade. Sustentava que queriam tão-somente viver em paz e sob influência de preceitos juramentados ao longo de um leque de gerações a que já se perdera de vista, quão distante ficara. O princípio básico que os guiava era um só: a matemática. Nada além disso. Perscrutassem sob qualquer ângulo, e os cálculos – eles apenas – serviram a respostas a todos os fenômenos.

Portanto, a vida estaria irremediavelmente fundada no que revelasse a nudez dos números. O restante seria herético. E ponto. Nenhum deus, nenhuma casualidade. E ai do que ousasse transpirar emoção! Se estabelecera por lá um certo manual de restrições em que nem versos com métrica se dava por permitido. A doutrina escolar começava e terminava em equações. Malditos fossem os conceitos de história, geografia. À literatura, um olhar enviesado de condenação. A forma circular, batizada de Absoluto, e para a qual não restava saída, acabou por se tornar-se síntese-mãe deste pensamento.

No Xonim de Baixo restou como centelha de resistência, portanto, aquela casa, a número 3, da Rua Direita. Não guarda evidências disto, mas em seus subterrâneos repousa uma espécie de reserva de delicadezas do lugar. Submerjam ao porão e confiram: duas aquarelas cortesãs dando luminosidade às paredes e, louvado seja, meia dúzia de livros encastelados à estante. Segredo do tráfico cultural cuja rota o minguado grupo de resistência não daria pistas, nem sob tortura.

Nutriam os rebelados uma vaga esperança de que um dia viesse a revolução. Não sabiam ao certo como terminaria, mas fundamental era que se acendesse o estopim. Puro sonho, porque era improvável que uma formação beirando um quinteto desencadeasse a mais leve reação aos preceitos fundamentalistas de Mano Gregório. Não seriam os poemas lidos em voz baixa, à silhueta dos lampiões, ou as orquídeas cultivadas à umidade generosa e clandestina dos subterrâneos que mudariam isso.

Ao cerco implacável da guarda local, a microconfraria decidiu mudar de tática. Cavar um túnel, a ver se escapava dali. Meses e meses de terra taticamente distribuída pelos arredores, e veio o primeiro sinal de vida. Sirenes, buzinas e um burburinho que sugeria ares novos. Surgiu, em seguida, o facho de luz inaugural. Eram letreiros mirabolantes, como jamais haviam visto. Desembarcavam em plena Broadway. Deslumbrados, feito fosse um sonho.

Empoeirados, sujos. E com cara de imigrantes em fuga. Num instante, estariam de joelhos. A polícia de Nova Iorque, arma em punho, ordenando rendição. Era sentença inapelável, que tinham aprendido ainda meninos. Ela, de novo a matemática, ensinando que num ponto qualquer, ainda que fosse no infinito, estaria lá o dedo de Mano Gregório. Decididamente implacável.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.

4 comentários:

  1. O surreal e o inusitado num
    texto que prende a atenção
    e nos surpreende.
    Abraços

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  2. Eletrizante história que mostra o resumo da humanidade: os dominadores e os dominados, os mandatários e os rebelados. Em todos os cantos, onde houver mais de um, teremos grupos políticos e suas dissidências.
    Destaco: " o rio acabou por ancorá-los definitivamente naqueles planos em que montanhas e água embandeiravam as terras." E além de tudo, a linguagem poética cheia de matemática me encantou.

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  3. Eduardo
    Senti no seu texto um clima de conspiração, onde rebeldes discutiam uma forma de tornar o mundo melhor. Veio-me à cabeça os inconfidente, em Ouro Preto, ou os guerrilheiros da geração 68, que lutaram contra a ditadura. Ou outros que lutaram por outras causas. Lindo e emocionante texto. Parabéns!

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