segunda-feira, 14 de setembro de 2009




O dia em que Quixote a mim se revelou

* Por Eduardo Murta

Da primeira vez em que o vi, me lembro, era um fim de manhã dessas insossas, tão pálidas que tudo parecia se mover em jeito robótico. Tudo, menos ele. E a cena era literalmente burlesca. O jaquetão em latas recortadas tomando a forma de armadura, a velha luminária de postes públicos se convertendo em capacete... E o feixe, o feixe enferrujado de vergalhões imitando a imponência de lança.

O cenário se punha mais surreal com aquela figura esguia trançando as pernas branquelas ao dorso do jegue a que chamava de Sabiá. E, sabe-se lá por quê, dois policiais o intimando a dar meia-volta ou acabar na cadeia. Ele bradando, dedo em riste, que não arredaria um milímetro dali. Diante do relógio da prefeitura, grunhindo que dele ninguém roubaria preciosas horas.

Foi enumerando a estratégia a que tachou conspiratória, o tal horário de verão. Eu já me retirava, e ele apontou o indicador, num desconcertante “você aí”! Parei. Nos olhamos, se apresentou educadamente como Jerônimo, e profetizou, tom soturno: o plano era subtrair 60 minutos diariamente e, quando o povo se desse conta, dia e noite seriam coisa só. Um claro escuro em que ninguém mais se reconheceria.

Sintetizou, bateu no peito e emendou: “Só por cima do meu cadáver”. Estava a um centésimo de ser preso. Foi que, de maneira prosaica e, puro improviso, saquei-lhe do olho do furacão. Os homens em farda rodando as algemas em sua direção, convoquei para protesto duas quadras dali, na luta pela emancipação do distrito de Brejo Dourado. Veio se afastando, entre solidário e desconfiado. Me seguiu.

Eu mentira, é verdade. E me aliviei por inteiro ao socorro do acaso, dando com um grupo que exigia congelamento no preço das marmitas do restaurante popular. Ufa! Sobrara tempo para, no caminho, me explicar delicadas futilidades, como se livrar de enjoos em noite de bebedeira. Simples, resumia. Bastava deitar-se aos pés da cama, atar-se a eles. Aí não havia mundo que rodasse.

Boa... Simulei interesse, ouvi uma meia-dúzia de frases desconexas e, missão cumprida, tratei de escapulir dali. Se passaram meses sem que o visse, até topar com o embaraço na parada militar do Sete de Setembro. Uma trinca de guardiões do Exército no encalço do sujeito que, jegue, lança e armadura em latinhas, teimava em se integrar ao desfile dos cavaleiros da guarda palaciana.

Cocei a cabeça, pensei em ignorar, mas meio segundo e lá estava eu no centro da discórdia. Tomei de assalto as rédeas do animal e logo éramos os três ao longe, beirando as bordas da rodoviária. As ferraduras de Sabiá crispando ao asfalto dominavam os diálogos. Compúnhamos um bicho que não falava e duas criaturas meio tristes, meio sem rumo e meio sem assunto naquele feriadão.

Até ele, súbito, se abrir, feito falasse a um velho amigo. “Vou me mudar daqui”. Se cansara de ser barrado, ele e o jeguinho, em portas de teatro, roletas de metrô, mercados distritais. De resto, era incompreendido e – reclamando – confundido com louco. E para onde mesmo se mudaria? “Pra lua”. Ah, bom... Conta que já encomendou lança maior – por lá, afinal, os dragões são gigantescos. E que só uma dúvida o consumia, o fazia relutar: se poderia mesmo andar descalço em solo lunar.

Sorri da doce infantilidade, o confortei dizendo que sim. Jerônimo agradeceu, feliz. Nos despedimos. Fiquei mirando sua silhueta esguia sumir no rumo dos prédios tristes da Lagoinha. Nunca mais o vi. Mas dele me recordo nas noites em que a lua se exibe esplêndida, como convidasse meninos – e tão-somente meninos – a correr por seus campos iluminados. Daqui o vejo. Daqui, quixotescamente, é a ele que brindo.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

Um comentário:

  1. Arrebentou geral, caro Murta! Personagem magnífico, narrativa poética ... Show! Mais que 10, nota 11. E com louvor!

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