quinta-feira, 3 de setembro de 2009




À janela

* Por Marcelo Sguassábia

São sortidos e peculiares os flagrantes vistos daqui, deste camuflado e geograficamente estratégico terceiro andar. Quase sete da manhã e nada nem ninguém deterá que a cópula bissemanal no apartamento à frente se dê de forma clínica e burocrática, com a resignação de quem paga uma promessa. A silhueta dos dois denuncia a posição de missionário. Três minutos, quando muito, e resolvido. Ao banheiro para a ducha, à mesa para o café, ao beijo na testa das crianças e pronto – estão ambos devolvidos à faina esmagadora das repartições e a seus amantes fixos e eventuais, com quem exercitam prazerosamente todas as variações do bem-bom.



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O que vem nas sequências é não menos previsível: “Pizzicato Polka” e o prelúdio de “Tristão e Isolda”. Até hoje custa-me entender como um mesmo gosto acolhe peças esteticamente tão inconciliáveis. E a música surge de ponto impreciso, não dá para identificar se o epicentro é na rua ou na cobertura do prédio. Não é impossível que brote espontaneamente dos arredores, composição do asfalto em parceria com os semáforos, trilha sonora por excelência daquele trecho de city.




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Nada de anormal ou suspeito lá embaixo, na lida dos homens-formigas com suas pastas de documentos e protocolos. Ainda assim me ocorreu fazer um instantâneo deste nada para a posteridade, retrato comum de momento neutro, tão desinteressante quanto esta pastilha solta no parapeito da janela – indício seguro que há anos a faxineira não passa um paninho com Veja Multiuso por aqui. Se passasse ela despencaria e talvez caísse no capô do fusca amarelo-gema do Nelson, porteiro do prédio. Mas isso também não traria consequência que alterasse esse arrastão de coisa alguma, nem seria o caso de acionar o condomínio para saldar a conta do Martelinho de Ouro.




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A TV ligada no canal do senado alça o demônio a anjo, arquivando a montanha de processos que pesa sobre sua figura repulsiva e recendendo a putaria. Velhacão experimentado, tão ou mais hipócrita que o casal do prédio em frente na posição de missionário. Violo a sepultura das velhas aulas de Educação Moral e Cívica para exigir reparação e ressarcimento de tempo perdido, ao som de um carro de bombeiros que dobra a esquina com a sirene a toda. Pode ser um trote. Este país é um trote. Porém o sujeito que liga para os bombeiros alardeando fogo falso não é mais criminoso que esses engravatados que ganham por fora para que o meu dinheiro seja usado na compra de mais um naco do Maranhão ou para pagar o salário do Secreta (parte dele, bem entendido).




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Se é possível em tese viajar para o futuro, como comprovou Einstein, em algum ponto do espaço o filho do casal que copulou agorinha já é longínquo e esquecido tataravô de alguém. Este prédio já ruiu, com pastilha solta e tudo, há centenas de anos. O impune senado da república terá sido condenado necessariamente ao pó, com seus cadáveres de esquerda, direita e centro formando camadas fósseis, que hão de jorrar petróleo. Mas, para que jorre caudaloso, já avisam antecipadamente: só com um agradinho de 10%. E em espécie.

* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”

2 comentários:

  1. Crônica voyeur de certa amargura que desvenda o cotidiano desenxavido da cidade hiperativa e tola. Momento de se debruçar e ver na vertigem vertical que tudo se empilha, seja na arqueologia, seja na realidade sensaborosa. Somos pouco mesmo, pouca coisa, mas é aceitar a canga, caro Marcelo, e avançar, avançar sempre. Parabéns.

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  2. As ninharias das vidas são tão miseráveis, que quando alçadas ao infortúnio da mediocridade ja fizeram quase uma revolução.
    Destaco: "homens-formigas com suas pastas de documentos".
    Somos um nada tão insignificante que, para reduzirmos esse sentimento de nulidade fazemos de conta que Deus se importa com isso daqui. Há gente que acredita até que Ele ajuda a achar a chave do carro que sumiu. Que o casal enfastiado encontre sim, brio na cara para desarmar esse circo. O show já terminou, se é que já aconteceu um dia. Os de terno mostram-se mais autênticos roubando do que o casal. Mais uma vez Marcelo, você transformou o nada em tudo. Muito bom!

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