Por
que as mães guarani rejeitam a creche?
*
Por José Ribamar Bessa Freire
Essa
e outras questões constam na dissertação de mestrado em
antropologia “Viver na língua guarani: mulher falando”,
defendida nesta quarta (28) no Museu Nacional (UFRJ) por Ara
Reté,
nome de batismo de Sandra Benites, que encontrou uma via original
para redigi-la: caminha com um pé na aldeia, outro na academia.
Assim, vai narrando sua própria vida e, através dela, tece
reflexões num vai-e-vem contínuo pela ponte que liga os dois
mundos. Relatos orais da avó parteira e as histórias de Nhandesy
Eté –
figura feminina da cosmologia guarani - dialogam com ensaios de
antropólogos não indígenas.
O
nascimento e a infância na aldeia é a ocasião para discutir o
parto e o corpo da mulher como lugar de conhecimento e como
território. Sua alfabetização em português, língua estranha, e
sua atuação já como professora suscitam observações sobre
escola, letramento, oralidade, língua, bilinguismo e a “doença”
do unilinguismo. Quando conta como foi sua adolescência, o
casamento, os filhos, aproveita para abordar a identidade étnica e
de gênero, a educação e a saúde das crianças. Na mudança para a
cidade discorre sobre a situação dos índios em contexto urbano.
Um
pé na aldeia
Conhecida
na universidade como Sandra Benites, Ara
Reté nasceu
em 1975 na aldeia Porto Lindo, em Japorã (MS), de mãe e pai que
falavam variedades distintas do guarani. Sua avó materna Kunhã
Takua fazia
partos de mulheres escondidas na mata com medo dos “brancos”.
“Como fui educada por minha avó, sou Nhandewa, apesar de meu pai
ser Kaiowa. São povos diferentes, mas que têm
em comum histórias como a de Nhandesy,
o que já foi registrado por antropólogos e linguistas” –
escreve. Viveu a infância em Porto Lindo, onde casou aos 16 anos e
se tornou mãe de quatro filhos.
No
primeiro capítulo, a pesquisadora narra sua caminhada (guatá) e
expõe a sabedoria da mulher guarani, seu modo de viver (teko),
destacando como concebe a educação e a saúde dos filhos. Reproduzo
aqui trechos da dissertação em português com expressões em
guarani, que adquire assim visibilidade.
“Na
sociedade guarani, a sabedoria se expressa através do corpo e da
língua, sempre levando em conta a cosmologia e os costumes. As mães
não têm
hábito de deixar os filhos em creche, distante delas, em lugar
desconhecido, com pessoas desconhecidas, porque isso gera um susto
grande nas crianças que pode causar nhe’ẽ
mondyi,
espírito assustado, as crianças ficam deprimidas. O espírito
assustado traz nhemirõ,
ou seja, tristeza, desencanto, depressão, a ponto de a criança
querer voltar para o amba dela,
que é a morada celeste”.
“Para
os Guarani, a saúde das crianças depende do bem estar da mãe. Mães
com problemas psicológicos, estressadas, tristes, vivendo na
correria, pressionadas, certamente ficarão poxy, ou
seja, revoltadas, impacientes e, na maioria das vezes, transferem
para os filhos esses sentimentos. O que você está sentindo, seu
filho também sente. Isso tem a ver com a caminhada de Nhandesyna
terra. Sem estar no estado de guapy -
calma, tranquila, em silêncio - facilmente a mulher se descontrola,
o ‘sangue sobe à cabeça’, tornando-a mais vulnerável”.
Arandu
e o corpo feminino
A
avó de Sandra Benites dizia que “as mulheres não precisam morrer
fisicamente para estarem mortas nessa vida. Os problemas de saúde se
refletem, especialmente no akã(cabeça),
a nossa base, onde nós mulheres suportamos tudo. As Guarani, nesse
estado emocional, não demonstram seus sentimentos, diferentemente
dos homens. É nesse momento que muitas “se entregam” nheme’ẽ,
ficam doentes emocional e fisicamente, se entristecem, ficam nhe’ẽ
kangy,com
o espírito fraco, py’a
kangy.
A minha avó dizia: “Depois que alguém fica nhemyrõ,
o seu espírito já está morto”.
Segundo
ela, “as dificuldades da mãe interferem no bem estar do filho, a
criança pode ficar pirracenta, chorar à toa, piary, crianças guapy
kuaa he’yn wa’e,
que não conseguem se sentar, inquietas, assustadas. Essa mesma
criança quando adulta pode ficar impaciente com as coisas, com as
pessoas, ser revoltada, surtada, py’a
tarowa.
O susto que a criança leva também tem consequências mais adiante,
na vida adulta”.
“Os
cuidados com o corpo feminino são muito importantes para a
construção do ser mulher guarani e evitar o estado de poxy,
de vulnerabilidade, dos efeitos do sangue, tuguy.
Na menstruação nós nos construímos como mulher e aprendemos a
cuidar do próprio corpo, ficamos de resguardo em casa, evitando
certos alimentos, fugindo do estresse ou do barulho excessivo, para
não ficarmos com dor de cabeça. Não abrimos mão desses saberes
únicos sobre o corpo, nem sempre reconhecidos pelo juruá (branco”),
mas que nós preservamos e praticamos.
“Arandu são
os saberes repassados através das narrativas orais. A minha avó
explicava a netos e netas que essas histórias com as experiências
de Nhanderu
Ete e
de Nhandesy
Ete devem
ser contadas para não cometermos os mesmos equívocos. Ela sempre
dizia que os ensinamentos estão na própria língua guarani.
Portanto, os homens precisam ouvir e aprender que as mulheres são
corpos diferentes, que devem ser entendidos em sua complexidade para
serem respeitados”.
A
escola: uma tortura
No
segundo capítulo, Sandra “atravessa a ponte” na expressão de B.
Meliá. Relata sua experiência traumática como aluna na escola da
FUNAI e depois como professora na aldeia Boa Esperança (ES) onde
passou a residir até se mudar para o Rio de Janeiro a fim de cursar
o mestrado, depois da Licenciatura Intercultural na Universidade
Federal de Santa Catarina. Cita a sábia Kunhã
Takua: “Minha
avó dizia que não podia acreditar muito no papel, pois o papel é
cego, a escrita não tem sentimentos, não anda, não respira, é
história morta”.
“Lembro-me
da hora de ir para a escola. Eu era criança, não sabia falar
português e fiquei assustada, sentia medo, apesar de assim mesmo
querer aprender a ler e a escrever. Hoje entendo essa angústia e o
atrito entre a educação tradicional guarani e a educação escolar.
As lembranças que guardei não são boas. Eu tinha horror de estudar
pelo fato de não saber falar português, me sentia como se estivesse
no alto pendurada pelos pés, de cabeça para baixo. A escola era um
sofrimento, me dava angustia terrível, mas eu tinha que obedecer”.
“Só
de saber que tinha que encarar aquele lugar terrível, passava mal e
me dava até febre. Já não queria mais aprender a ler e escrever,
a angústia tomava conta de mim. Só pensava numa estratégia para
driblar o professor, contra a pressão que ele exercia sobre nós.
Não conseguia escrever nada, por medo de ser castigada. O medo me
travava toda. Como as crianças guarani sempre reagem a partir
donhemondyi, irei
explicar este “sentimento de susto”, que deve ser evitado, que
pode levar até a morte ou deixar sequelas físicas (diarreia,
vomito, febre) e problemas psicológicos”.
“Para
os Guarani, o mau humor de uma pessoa insegura é visto como uma
doença, um problema de saúde. Todas as coisas estão ligadas com a
educação, inclusive a saúde. Se os juruá se
preocupam com uma pessoa depois dela ficar doente, nós, ao
contrário, nos preocupamos em prevenir. Por essa razão procuramos
compreender e respeitar cada teko.
Na escola em que eu estudei, não havia preocupação e respeito. O
professor só usava o português. Era muito ruim e nos castigava por
qualquer coisa. Minha alfabetização foi assim”.
Outro
pé na cidade
“Trago
lembranças do tempo dramático vivido na escola para tirar delas
alguma lição. Com os problemas que enfrentei procuro aprender,
melhorar, evoluir, dar sentido à memória da minha avó, responsável
maior pelos meus conhecimentos e pela coragem que carrego comigo.
Devo às kunhangue,
às mulheres, mesmo ocultas em sua própria história. Elas sempre
estão lutando, incansavelmente, para manter sua sabedoria e a
própria fala, aywu,
nhe’ĕ,
espírito, palavras, que no dia a dia são vividos, narrados,
contados e sentidos, através da lembrança de Nhandesy.
O
terceiro capítulo explicita as diferenças de gênero ao registrar a
história deNhandesy
Ete (Nossa
Mãe verdadeira) que funciona como uma espécie de arquivo vivo da
sabedoria das mulheres dentro da organização social guarani.
Ela
fala dos deslocamento de muitos índios da aldeia para a cidade, em
todo o Brasil, destacando Mato Grosso do Sul como um caso extremo,
pela invasão das terras indígenas e por todo tipo de violência que
atinge as mulheres.
Residindo
agora no Rio de Janeiro, Sandra se pergunta o que fazer com a
sabedoria de Nhandesydentro
do contexto urbano, que valor tem esse saber, como discutir o papel
da mulher indígena na sociedade atual, dividida entre o que ela
denomina de micro tekó (individual)
e o macro (coletivo) que se sobrepõe ao arandu da
mulher:
-
Como ensinar o que aprendi com minha avó às mulheres guarani
e juruá para
que fiquem protegidas e evitem que o homem tenha poder sobre elas?
Sua
resposta vem no final da dissertação:
“Os
Guarani ainda vivem intensamente nas suas rezas, apesar das
dificuldades enfrentadas. Na minha caminhada aprendi com as mulheres,
com o que ouvia da minha avó e da minha mãe, que diziam:
-
Somos terra, somos chão, somos rios e pássaros e plantas que dão
flores e frutos, porque as mulheres sempre existiram no universo para
habitar a terra”.
P.S.1
Sandra Benites: "Viver na língua Guarani Nhandewa: mulher
falando". Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social (PPGAS) - Museu Nacional. Universidade Federal
do Rio de Janeiro. 2018. Banca: Bruna Franchetto (orientadora), Luísa
Belaúnde (PPGAS) e José R. Bessa (UNIRIO-UERJ). Ao lado Chiquinha
Pareci, primeira doutora indígena do Museu Nacional, que defendeu a
tese no mesmo dia 28 de fevereiro de 2018.
P.S.2
- Fotos de crianças guarani feitas no curso de fotografia do
Pro-Indio (UERJ) em parceria com a UFMG, coordenado por Ana Paula
Silva, e ministrado pelo fotógrafo documentarista João Roberto
Ripper e sua equipe. Os autores das fotos são os guarani: Ivanildes
Silva, Neusa Mendonça, Algemiro da Silva, Waldir da Silva, Ronando
Mariano, Cecílio Fernandes, Flávi Ara´i, Alexandro Benite,
Genilson da Silva, Cleiton, Daniel e Edmsilson Karai, Tupã Mirim e
André da Silva, formado pelo Cine Ostra.
*
Jornalista e historiador.
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