Dona
Francisca era branca de tudo
*
Por Renata Losso
“A
maior vulnerabilidade do humano, a contingência de não lembrar e
não ser lembrado”. (Valter Hugo Mãe em “A desumanização”)
Dona
Francisca era branca de tudo. Quando mais jovem, saía nas
fotografias com óculos quase escuros e chapéu de abas bem largas
para se proteger da luz solar. Logo em minha primeira aparição
diante das câmeras fotográficas, em seu colo, sua pele já quase
envelhecida contrastava com a minha, de uma brancura sem nenhum
passado — dela, naquele momento, eu apenas possuía uma
disfarçada herança na cor dos olhos. Lembro-me bem, também, de
suas pernas já quase cansadas repousando na varanda daquela minha
infância, onde a ingênua ausência da cidade grande transparecia
tanto nelas quanto nas agulhas de tricô. Hoje, sua pele está quase
transparente feito água. As veias e artérias, quase negras de quase
nada — mas um nada diferente do que tenho em minha memória,
que feito formulário ansiando pelo azul das canetas, procura guardar
as poucas lembranças inventadas sobre ela.
Foi
numa cama de hospital, cambaleando na corda bamba dos 90, que ela me
contou uma vez que seu pai nunca havia voltado à terra natal depois
de atracar no Brasil — e isso era motivo daquele tipo de pena
que acaba trazendo a redundância à mesa de jantar. Segundo a
memória já notavelmente embaralhada dela, ele havia sido
considerado um desertor na Alemanha da 1ª guerra mundial e acabou
saudosista na São Paulo dos imigrantes. O navio, que sairia do porto
de Santos com meu bisavô rumo aos campos de batalha, não chegou a
se soltar do cais: O anúncio de bombas pelo caminho vetavam o zarpar
pelo oceano. O alemão abandonado, portanto, se surpreendeu quando
foi informado pelo irmão que o país não o receberia novamente:
fugir da guerra, afinal, era um disparate — mesmo que as limitações
líquidas de um Atlântico te impeçam de despertar em susto e
acordar em farda. Dona Francisca me comentou então que a Alemanha
não tinha nada contra: o que realmente vetou o pai dela de voltar às
terras europeias se explicava sob o título de mentira & ciúmes
do irmão alemão, que não queria o irmão brasileiro de volta para
não dividir a atenção da mãe — feito criança capaz de
cometer as maiores crueldades caso tenha a ingenuidade como desculpa.
Para ela, as pessoas costumavam ter razões de novela das nove para
cada atitude que tomavam ou que iriam tomar e, como o mundo ao redor
já ficava suscetível ao abismo da desorientação, as autoridades
alemãs do início do século XX perdiam qualquer relevância. Seu
pai, ao final, passou a vida cabisbaixo e corcunda sob o peso do
esquecimento e acabou morrendo de cirrose após ter trabalhado a vida
toda numa fábrica de cervejas (se foi alcoolismo, ela nega). O
capitalismo tem dessas ambiguidades, comentei. Mas ela já não me
entendia e riu sem graça, fazendo questão de me lembrar de que já
não se lembrava nada da língua alemã (como uma maneira indireta de
se desculpar pelos possíveis inexplicados de seus discursos
fragmentados): seu pai, cheio de rancores, havia proibido o idioma na
casa paulistana pois não queria mais lembrar-se do sangue germânico.
Ela, no entanto, passou o meu passado — e o futuro já tardio
dela — contando-me palavras em alemão sempre e quando eu
aparecia pela cozinha para ser criança ansiosa esperando o almoço
ficar pronto. Mas não nos lembraríamos mais disso e ela nunca mais
se queimaria ao fogão.
Dona
Francisca nunca teve estantes, mas ainda guarda a efemeridade em
poucas gavetas trancadas com chaves perdidas. Eu não sei que livros
ela chegou a ler, que tipo de sapatos preferia usar, o que fez que
ela envelhecesse assim olvidada do tempo, da ausência e da morte.
Dona Francisca era mãe de três meninas com primeiro e segundo nome
e havia deixado o trabalho de bióloga-professora-vendedora de
perfume para subir ao altar e acabou se despedindo muito antes de
chegar à terceira idade do marido de sangue italiano que eu, como
que fadada a somente imaginar meus antepassados, apenas vi em tons
pretos e brancos. Desde que a conheci, tinha mania de me perguntar as
horas como se perdesse os óculos ou precisasse urgentemente
verificar se as cordas vocais ainda funcionavam. com pontualidade
provavelmente herdada de seu pai — tinha o sangue alemão
embora gostasse de doces japoneses — , despertava cedo e
dormia cedo como em tentativas assíduas de ver o tempo passar mais
rápido, pecando pelo atraso apenas em algumas datas festivas. Mas
Dona Francisca não tinha pressa: ao andar, apoiava-se nos móveis e
paredes e objetos da casa em que vivíamos como se os tivesse
sentindo pela última vez, como que despedindo-se sem afobar-se, como
se soubesse que em breve não mais perceberia as texturas criadas
pelos homens, as invenções dos homens, os próprios homens.
Dona
Francisca demorou a reconhecer-me na última vez que a vi. Perguntava
quem eu era, se era da família, por onde eu havia entrado, quem
abria a porta a desconhecidos assim para aquele lugar que todo dia
ela pensa que é o último e amanhã é hora de ir embora que ela não
sabe se pode pagar por todo esse tempo comendo e dormindo e tentando
distinguir as poucas visitas que ela não tem nada para oferecer e
tem gente ansiosa esperando por uma vaga na fila da senilidade. E ela
procura o endereço da própria avó que mora ali por perto: quer
mandar uma carta, visitá-la, convidá-la para o café da tarde que
ela deve estar se sentindo sozinha pois vocês não têm tempo, a
vida é muito corrida, o trabalho, não quero dar trabalho, você viu
que aquele casaco que minha mãe me fez quando eu era criança sumiu
acho que alguém roubou e faz muito frio aqui às vezes. Dona
Francisca então se ajeita na cadeira de rodas com as mãos que ficam
ainda menores a cada inverno e com a atenção que não a deixa
perceber a memória brincando de esconde-esconde como faziam os netos
quando pequenos, as filhas quando pequenas, ela quando pequena,
quando via o mundo com a inocência daqueles lindos olhos azuis da
cor do mar mais límpido que ela não viu nem mais verá ser herdado
ou lembrado por ninguém.
*
Jornalista.
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