O
sumiço de três alemães na floresta amazônica
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Procuram-se,
vivos ou mortos, três alemães que sumiram na floresta amazônica
sem deixar vestígios. Gratifica-se a quem der algum indício do
paradeiro deles. Favor avisar à Embaixada da Alemanha. Aqui vão os
retratos falados de cada um:
João
Henrique Meissner,
alto como uma sumaumeira, cabelo vermelho cor de fogo e olhos azuis,
exala um odor de repolho fermentado em salmoura.
Pedro
Gerardo Wortmann tem
a mesma estatura, cabelos louros e uma sereia tatuada no braço
direito. Fala como se mastigasse pedras. Cada palavra é uma pedrada.
Guillermo
Dorotheo Ulrich,
cara quadrada, cabelos castanhos claros, queixo de vovó Filó. Usa
óculos. Tem um cacoete: é pisca-pisca, vive pisca-piscando.
Os
três, que se amarram num chucrute e numa cervejinha, quando podem
estraçalham um arenque defumado do Mar do Norte regado com vinho
branco feito com uvas ensolaradas do vale do Mosela. Não dispensam
torta de maçã. Mas onde encontrar arenque, uva e maçã na floresta
amazônica?
Cadê
os alemães?
Onde
está Meissner? Quem viu Wortmann? Cadê o Dorotheo Ulrich? Com
aquele porte de castanheira, eles não podem ter se evaporado sem
deixar a menor pista.
Consulados
e embaixadas se mobilizam nervosamente. Diplomatas ouriçados têm
ataques de faniquito. Os Ministérios das Relações Exteriores dos
dois países, em polvorosa, já troca-trocaram vasta correspondência.
Autoridades locais esquadrinharam as clareiras da floresta e todos os
becos de Belém e Manaus. Inutilmente. Mães e noivas aflitas de
Frankfurt esperam ansiosas que os sequestradores digam quanto querem
pelo resgate.
Até
mesmo Ernst Engel, um alfaiate de Hamburgo, procura semanalmente o
Consulado Geral do Brasil naquela cidade preocupado com o trambique,
porque os três alemães deixaram lá uma dívida de 1.899 marcos e
sete shillings.
O
Governo da Alemanha pressiona. O ministro dos Negócios Estrangeiros
do Brasil, Aureliano Souza de Oliveira Coutinho, em Aviso do dia 16
de janeiro de 1841, solicita ao presidente da Província do Pará,
Bernardo Souza Franco, informações sobre os três cidadãos e exige
providências enérgicas e urgentes para localizá-los.
Todos
os funcionários foram acionados para tentar encontrá-los. Ofícios
vão-e-vêm. Um deles, redigido com letras caprichosas de caderno de
caligrafia, foi enviado pelo presidente da Província do Pará ao
Comandante das Armas, com cópias à Thezouraria da Fazenda e ao
Comandante da Força Naval em Belém, indagando sobre rastros dos
alemães.
Ôpa!
O ofício foi respondido. Encontraram uma pista. José Manoel Rangel
de Carvalho, contador e escriturário da Thezouraria da Fazenda do
Pará, vasculhando os arquivos daquela repartição pública,
encontrou o Livro de Despesa da Caixa Militar nº 392, onde aparece o
pagamento de salários nos meses de setembro, outubro e novembro de
1836 a um dos alemães: João Meissner.
Esta
informação é comunicada no dia 8 de junho de 1841 ao chefe
imediato, o inspetor de Fazenda Manuel Rodrigues D´Almeida. Daí é
repassada em cadeia hierárquica ao presidente da Província do Pará,
ao ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, ao Consulado do
Brasil em Hamburgo e, finalmente, ao governo alemão que não se
conforma e exige mais detalhes. Isso foi trinta anos antes da
unificação da Alemanha, que não tinha ainda seu Bundeskanzler.
A
procura continua. Finalmente, o escrivão do Hospital Geral Militar
do Pará, Ignácio Porfírio da Costa, obtém dados mais concretos.
Consultando os livros de entrada do hospital, o zeloso funcionário
encontrou nas folhas 2º e 31 que Meissner, o cabelo de fogo, entrou
gravemente ferido no dia 17 de julho de 1838 e morreu dois meses
depois. Wortmann, o tatuado, baixou hospital no dia 20 de outubro de
1837 e morreu em 5 de março de 1838. Quanto ao pisca-pisca Ulrich,
ninguém sabe, ninguém viu.
Os
cabanos: piroca-cana
Afinal,
que diabos vieram fazer na Amazônia esses três gringos? Os três
eram, na realidade, mercenários pagos pelo Governo do Pará com o
dinheiro suado do contribuinte caboco para matar paraenses e
amazonenses, guerreiros da Cabanagem, um movimento revolucionário
que se alastrou por toda a Amazônia unindo índios, negros, tapuias
e mestiços contra a opressão e a exploração da minoria de
proprietários brancos.
Nessa
época, a Província do Pará, que englobava o território do atual
Estado do Amazonas, tinha 120 mil habitantes, dos quais 35 mil eram
índios aldeados, 30 mil negros escravos, 40 mil mestiços e tapuias
e apenas uns 15 mil brancos. Sem contar, é claro, os índios
isolados que eram incontáveis.
Os
cabanos tomaram o poder no dia 7 de janeiro de 1835. Mataram o
presidente da província Lobo Souza. Seu corpo ficou exposto durante
um dia inteiro e os cabanos desfilaram diante dele, cuspindo e
chutando o cadáver. Depois de enterrado no cemitério da igreja das
Mercês, em Belém, os cabanos ainda mijaram na cova. Era a vingança
contra mais de 200 anos de miséria e humilhação, contra o
“quadrilhão” antecessor do Jader Barbalho.
Olha
só em que fria foram se meter os três alemães! Olha só!
Eles,
na realidade, não eram três. Eram muitos. Faziam parte da Força
Naval comandada pelo desertor da Marinha Britânica, John Taylor, que
tinha duas divisões compostas por 460 soldados, todos eles
mercenários alemães. Chegaram ao Pará no dia 25 de junho de 1835
em uma fragata, 20 escaleres, lanchões e outros barcos para garantir
a posse do marechal-de-campo Manuel Jorge Rodrigues, nomeado
presidente da Província do Pará.
Segundo
dados do Inspetor da Fazenda, responsável pelo pagamento das tropas,
os alemães fizeram parte do 1º Batalhão de Fuzileiros, composto
por praças estrangeiros que, em 1836, sob o comando do major
Fernando da Costa, saíram matando os cabanos como se fossem moscas.
A
repressão foi brutal e sangrenta. Uma carnificina. Calcula-se que
40.000 pessoas morreram na Cabanagem. Entre eles Meissner, Wortmann e
Ulrich, feridos de morte provavelmente em algum combate nos becos de
Belém, onde cabanos de nomes sugestivos como Piroca-Cana, Mulato
Fidelis, Preto, Zé Ourives, Chico Veado, Onça do Mato, Mãe da
Chuva, lutavam com bordunas, facões, flechas, zarabatanas e todo
tipo de porrete e cacete.
Meissner
e Wortmann foram enterrados em Belém. Ulrich, o pisca-pisca,
provavelmente atingido por alguma bordunada, teve seu cadáver
atirado ao rio para alimentar as piranhas. Sequer morreram lutando
por algo em que acreditavam.
Taqui
tucupi
Quando
os três saíram de Hamburgo ao encontro da morte em Belém, a
Alemanha havia acabado de perder dois filhos ilustres: o filósofo
Hegel e Goethe, poeta lírico. Mas os três mercenários dificilmente
puderam fruir do prazer da leitura de “Fausto”, uma das maiores
obras da literatura alemã, como sequer desconfiavam das leis
fundamentais da dialética formuladas por Hegel. Será que seus
ouvidos chegaram a ser acariciados por alguma cantata de Bach?
Pobres
Meissner, Wortmann e Ulrich. Não puderam nem gastar o dinheiro do
soldo que receberam para matar cabanos. Não desfrutaram da
literatura, da música e do conhecimento produzido em sua pátria de
origem. Devem ter morrido sonhando com joelho-de-porco, salada de
arenque com pepinos e batatas, tendo por sobremesa apfelstrudel.
Sequer
puderam aproveitar o melhor da Amazônia. Morreram sem se deliciar
com a caldeirada de bodó, o doce de cupuaçu, o vinho de buriti, o
açaí e o tacacá. Nos últimos dias de combate, a tropa passava
fome, a Esquadra já não era mais abastecida com feijão, toucinho e
carne salgada vindos do Rio de Janeiro, segundo queixas do almirante
John Taylor, em ofício ao ministro da Marinha.
Os
alemães, devotos de Santa Etelvina, se meteram numa briga que não
era a deles e, ainda por cima, do lado errado. Teria sido melhor
ficar mamando uma cervejinha em Hamburgo. Morreram o Cabelo-de-fogo,
o Tatuado e o Pisca-pisca. Bem feito! O pescoço francês do
prefeito! Lamentamos apenas o trambique dado no pobre alfaiate de
Hamburgo. Será que os cabanos mijaram também na cova dos alemães?
Meninos,
eu li os manuscritos com a história dos três alemães no Arquivo do
Itamaraty, no Rio de Janeiro, que guarda documentação sobre a
Cabanagem e sobre a história dos índios na Amazônia. A narrativa
que aqui apresentei foi feita a partir da troca de correspondência
entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a Província do
Pará. Tudo está na papelada, menos o dado de que Ulrich era
pisca-pisca. Isso eu inventei. Afinal, mais do que historiador, sou
um fofoqueiro. Mas também, com um nome desses – Dorotheo Ulrich –
o cara tinha de ser pisca-pisca, não tinha não?
P.S.1
– Para os historiadores sérios, que não gostam de fofocas, indico
o Fundo “Correspondência” do Arquivo do Itamaraty e dentro dele
a Série 16 – Correspondência com Governos, Repartições e
Autoridades Regionais e Locais, com destaque para as sub-séries
“Amazonas” e “Pará (1823-1899), que contém documentos sobre o
Messianismo no Rio Negro, relatórios das Diretorias de Indios e
dados sobre os mercenários estrangeiros na repressão à Cabanagem.
Lá o pesquisador encontrará tudo que foi aqui narrado, menos
o Pisca-pisca.
P.S.
2 - Versão ligeiramente modificada da crônica publicada em A
CRITICA, de Manaus (11/051993) com o título de “Meninos, eu li”.
*
Jornalista e historiador.
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