sábado, 23 de setembro de 2017

Morte e vida, Severino (A loucura de um pequeno gigante)


* Por Fábio de Lima



Eu não sei mais de nada. A vida me iludiu. Ontem eu era poeta, hoje eu sou pateta. De inteligência sei pouco. De amor sei menos. E com o pouco que sei, aprender ficou difícil – viver nunca foi fácil. Um amigo certa vez falou: feliz daquele que não sabe. Meu amigo se matou e eu só soube a notícia. Roda o relógio, roda o mundo, roda a vida e eu aqui olhando a pulga do leão.

Penso em escrever livro, mas a caneta anda preguiçosa. Sonho em fazer filme, mas meus olhos estão cansados. O problema está no rótulo. Os problemas estão nas letras miúdas do manual de instrução. Podia até dar um tiro no peito para justificar a dor. Podia correr para cansar mais rápido. Podia enlouquecer para entender alguma coisa. Mas o real problema do artista é a carteira de trabalho. ARTISTA não tem carteira – nem salário ou horário.

Brasileiro quer ser ARTISTA, mas ARTISTA não quer ser otário. Com a bunda de fora na capa de revista toda mulher é ‘artista’. Com o G bem grande naquela revista todo homem é ‘artista’. E o ARTISTA de verdade, sem espaço nas revistas, brinca de jornalista, advogado, professor, motorista, pintor – de parede – sacou?!

Saquei!

Era um 38 com 3 balas na agulha.

Tudo começou às 3h00 da madrugada. Sentei na sarjeta e acendi um cigarro. Saiu 1 garçom, Saíram 2. Com o último, às 3h35, foram 9 garçons e 3 cigarros. Brasa quente. Só faltava o gerente. Apaguei o cigarro.

Restaurante fecha tarde. Naquela hora já era cedo. Eu tinha medo – mas também fome.

Então gritei que era um assalto. O gerente do restaurante pediu calma e disse que não tinha mais que 800 reais no caixa. Eu, jovem ARTISTA, perguntei onde estava o cofre. O gerente, pai de família, respondeu que não havia cofre. Todo ARTISTA é persistente e chato. Perguntei se o gerente queria morrer. Ele pediu calma de novo e disse que havia mais algum dinheiro em cheques. Eu, ARTISTA, gritei para o gerente não se mexer ou atiraria. O gerente, idealista, com as mãos suadas e o pavor no rosto, afirmou que só iria abrir o caixa. Todo ARTISTA é desconfiado. Gritei mais uma vez que iria atirar. O gerente, homem decente, quis explicar, convencer e transformar.

Sem tempo para o gerente e sem tempo para mim, ARTISTA, uma bala fez um grande barulho e depois um total silêncio.

Eu, ARTISTA, virei capa de jornal, editoria policial, com o pseudônimo MARGINAL, assim em letras graúdas.

Severino da Silva
21 de agosto de 2006

Severino tinha apenas 22 anos quando foi preso. Morreu, semana passada, de desgosto, segundo o atestado de óbito. Quem assina? Eu, Fábio de Lima. Quem sou? Deus, por algumas palavras e PREPOTENTE, pelo conjunto da obra. Mas voltando ao tema, Severino, que não é Severina, morreu com 29 anos. Era artista desde os 13. Sempre fez esculturas com palitos de fósforos. Chegou a reconstituir, em miniatura, o próprio presídio, onde morava, com esses palitos. Mas a vida de ARTISTA, no Brasil e no mundo, é dura – penosa – escrava e cruel. João, que não é o Cabral, com 10 anos, órfão de pai, há 07 anos, por causa da bala certeira de um criminoso frio e calculista, também sonha em ser ARTISTA. Ele quer sair na capa de jornais e revistas. Ele quer ser famoso. Severino não quer mais, nunca mais.

E eu aqui, ainda a olhar a pulga do leão. Folheando o jornal da semana passada as notícias não têm sentido. Folheando os poemas escritos às ex-namoradas o amor não tem sentido. Cansado de folhear os livros nas estantes. Cansado de escrever coisas tristes. Algo me diz que ser ARTISTA, em qualquer país, é carregar a cruz e não reclamar – só esperar o último punhado de terra que lhe cabe. ARTISTA, ao pó voltarás. Morte e vida, Severino, de Deus eu não sou nada – a não ser a pulga do leão. Amem!

*Jornalista e escritor ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Atua como repórter freelancer para o jornal Diário do Comércio (SP) e é diretor de programação da Cinetvnet (TV pela WEB). Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO.




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