Os contundentes diários secretos de
Humberto de Campos
O escritor russo Fiodor Dostoiévski declarou, em determinada
ocasião: “Nas lembranças de cada homem há coisas que ele não revelará para
todos, mas apenas para seus amigos. Há outras coisas que ele não revelará nem
para seus amigos, mas apenas para si próprio, e ainda somente com a promessa de
manter em segredo”. Ou seja, há idéias, fatos e comportamentos, sobretudo
vícios, preferências tidas como imorais, taras etc. que gostaríamos que jamais
viessem à baila, caso os tenhamos. A razão é óbvia. Se fossem (ou se venham a
ser) divulgadas, essas coisas secretas que ansiamos em conservar para sempre em
segredo, maculariam (ou macularão) nossa imagem. Para que a divulgação não
aconteça, principalmente após nossa morte, manda a prudência que não reste a
mínima prova de nada disso: nem carta, nem bilhete, nem e-mail, nem diário, nem
rascunho de algum texto que tenhamos nos arrependido de iniciar, nem fotos, nem
vídeos etc.etc.etc. Ou seja, nada. Rigorosamente nada.
Ainda assim, nunca haverá garantia absoluta de que aquilo
que tenhamos nos empenhado tanto para permanecer secreto (como um romance
extraconjugal, ou algum caso de homossexualismo, ou mesmo um crime cuja autoria
jamais foi descoberta, entre tantas e tantas coisas), permanecerá para todo o
sempre em segredo. Para que isso ocorra o ideal é não fazer e não pensar nada
de errado. Porém se o fizer, jamais confidenciar isso a ninguém, nem à pessoa
em que depositar a mais irrestrita confiança, seja ela quem for. Miguel de
Cervantes escreveu a esse propósito: “Tolo e muito tolo é aquele que, ao
revelar um segredo a outra pessoa, pede-lhe encarecidamente que não o conte a
ninguém”. Maliciosamente ou não, deliberadamente ou por acaso, essa revelação
certamente será partilhada com uma ou com milhares de pessoas, sabe-se lá
quantas.
Humberto de Campos certamente tinha consciência de tudo isso
ao escrever seus diários. Ele começou a escrevê-los, posto que não com regularidade,
antes de se tornar o jornalista, escritor e político famoso em que se tornou,
ou seja, ao longo da década de 1910, mais especificamente em 1915.
Interrompeu-os em 1917 e retomou-os somente depois de diagnosticada sua doença,
nos seis últimos anos de vida, entre 1928 e 1934. A partir de então,
escreveu-os com absoluta assiduidade, até oito dias antes de morrer. Ao
pressentir a proximidade da morte, poderia tê-los destruído, dado o conteúdo
sumamente polêmico desses registros diários. Não os destruiu. Por que? Talvez
só ele soubesse o motivo. Não se diga, no entanto, que não soubesse que as
observações que fez nesses volumes tão íntimos, iriam causar polêmicas e gerar
inimizades “post-mortem”. Ele sabia disso. Tanto sabia que deixou instruções
escritas para que esses “diários secretos” fossem publicados apenas quinze anos
depois de sua morte. Ou seja, somente a partir de 1949.
Quem adquiriu os direitos comerciais para a publicação desse
material respeitou esse prazo. Aliás, foi muito além dos quinze anos exigidos
por Humberto de Campos. Publicou-o, a princípio em forma de fascículos e,
posteriormente, em livro, só em 1954. Ou seja, vinte anos depois da morte do
escritor. E esses diários secretos caíram como uma “bomba” de altíssima
potência nos meios literários, culturais e políticos do Brasil de então,
repercutindo, inclusive, por mais de uma década. Os registros e impressões
pessoais de Humberto de Campos trouxeram revelações e opiniões bombásticas
sobre inúmeros figurões da República, quer do meio cultural, quer do literário,
quer do político etc.etc.etc. Raras personalidades públicas foram poupadas. Nem
mesmo Machado de Assis, que o jornalista maranhense jurava venerar e reverenciar,
escapou de suas observações ferinas. Vários de seus amigos íntimos, a quem
Humberto de Campos devia gratidão pela ajuda que lhe prestaram, como Olavo
Bilac, por exemplo, foram ironizados e ridicularizados. O então presidente
Getúlio Vargas, que se confessava admirador incondicional do jornalista e
escritor maranhense, foi um dos alvos preferenciais de seu escárnio.
A organização jornalística que adquiriu os direitos de
publicação dos diários de Humberto de Campos, foi a Empresa Gráfica Cruzeiro S.
A., fundada em 1928 (ano em que ele “descobriu” sua doença), pelo jornalista
português Carlos Malheiro Dias. Anos depois, ela seria adquirida por Assis
Chateaubriand e incorporada ao conglomerado de mídias (jornais, revistas,
rádios e duas emissoras de televisão) conhecido como “Diários Associados”. O
carro chefe, tanto da empresa original, quanto da que a adquiriu era a revista
semanal “O Cruzeiro”, de circulação nacional, que por muitos anos foi líder
desse setor jornalístico.
Ressalte-se que os “Diários secretos” de Humberto de Campos
não contêm só críticas e observações mordazes aos figurões seus contemporâneos,
amigos ou inimigos, indiferentemente. O último registro que fez, em 27 de
novembro de 1934, foi comovente. Foi uma das mais belas e pungentes
manifestações públicas de amizade que alguém já fez. O alvo desse seu registro
foi seu grande amigo Coelho Neto, que havia morrido dias antes. Humberto de
Campos encerrou assim sua mensagem ao seu ilustre colega de letras e de
Academia, que considerava como a um irmão: “Despeço-me! E deixo que as lágrimas
me corram pelo rosto, e que os soluços me tomem o fôlego, profundamente
comovido. E mando à sua casa uma braçada de cravos vermelhos para o seu
caixão”.
Boa leitura!
O Editor.
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Li hoje num livro de Ana Cristina César (A teus pés) que, ao se escrever um diário, se houver literalidade, não é autêntico e nem confiável, pois a pessoa escreveu com a intenção de ser lido e não para si próprio.
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