Vou-me embora pra mim mesmo
* Por
Marcelo Sguassábia
Ou é agora ou nunca
mais, pensei.
Rumei decidido à cata
das tardes de esteio firme, aquelas que eram substancialmente tardes de rachar
o liso das calçadas, em horas e horas de ócio pra muito além do boulevard. Fui
chegando e pus-me à vista das cercas mesmas das casas todas. Cercas feitas de
igualdade, talhadas no esquadro do artesão, cercando as sinas semelhantes de
homens parecidos no vagar e na fisionomia, no jeito de olhar a serra e de ir
tocando a vida em meio a assovios e nomes-do-pai.
Eu voltando, voltava
no ventre do retorno eterno, o volver infante, espesso de leite e cheiroso de
talco. Entrei de fininho naqueles dias findos, sabendo do risco do reboco
desprendendo, das heras há muito não aparadas e das calhas entupidas. O uísque
com gelo era um guizo nas mãos trêmulas com as dez vistas que assomaram com
cantoneiras nas bordas. Via em cores e confrontava ao branco e preto que ficou
e que me impulsionava a cavar naqueles sítios a parte faltante de mim. E dizia,
pra encorajar-me, que vinha pra cumprir o que tinha de ser e ficou no intento,
por teimosia de seguir caminho outro e não o adjacente, o já disposto em
espólio antepassado, o que era a fortuna ou o infortúnio de todos os outros
filhos das casas de cercas baixas. Quis-me assim, fora dos médios.
A porta da frente
rangeu alto quando ela entrou. Tão pouco mudada, tão secularmente ela, musa do
feudo revisitado.
- Eu te disse que
ninguém sai impune daqui.
- Isso eu sabia e
paguei o preço, essa certeza era o peso que vergava a mala na estação, o andar
indeciso renegando a ida, a vontade um milhão de vezes frouxa. Por que veio até
aqui, me diga? Mórbida. Parece nome de gente, Mórbida lhe cai tão bem. Trago
nas solas o barro do mundo, caríssima, de terra estranha que teimei pisar e
amaldiçoei chorando muito, fique ciente.
- Por aqui ficou o que
sempre esteve, mais ou menos do jeito que Deus dispôs nos seis dias de
trabalho. Não te digo que seja o mesmo o sineiro na matriz, nem o bedel, muito
menos as meninas que a medo te ofereceram a carne antes de mim. Mas você também
não é o você que esse lugar pariu.
- Hoje sei. Mas eu
nunca saberia, se ficasse.
- Ali estão as
ferramentas descansadas na bancada do seu velho. Com o olhar de agora talvez
veja serventia nelas. Não há mais tua mãe varrendo, nem quem quer que seja
cuidando do que foi. Tudo meio triste, aquarela muito aguada. Sabe que não
imaginei revê-lo assim, com esse copo na mão, cedendo como as vigas do terraço?
- Desaponta ver essas
paredes pelo meio, eu que vi cada fiada de tijolo se erguendo, os beirais se
levantando... devia era não voltar e não ter que ver essa escada, que já não
leva a parte alguma.
- Me lembro dela com
corrimão de bronze e feltro vermelho nos degraus largos. Lá em cima, o tempo
bom da gente olhando da janela do seu quarto.
- A gente só não podia
com o vento batendo forte.
- O vento leva e traz
as coisas. O vento ensina.
* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs:
WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e
WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Voltar ao lugar de ontem não nos faz morar lá, mas nos leva a viver tudo de antes. Ah, nossa memória nos inunda de saudade. Bela visita ao passado, Marcelo, e aqui nos mostrou seu lado nostálgico e lírico.
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