O
gatilho do texto
* Por Nei Duclós
Quem acampou na chuva, e possui apenas
um fósforo e está só, no ermo; ou quem tenta tirar faísca de madeira verde, e
não consegue fazer uma pequena chama (nem sequer uma labareda), sabe o
deslumbramento que é um raio depois de horas de nuvens carregadas. Como a
natureza pode fazer corisco apenas com água suspensa?
Se houve alguém que um dia tentou
chegar na primeira chispa, deve ter desistido muitas vezes, depois de uma vida
vendo o fogo surgir quando menos esperava, ou ficando longe do incêndio quando
mais queria. Ele sentou-se numa pedra numa tarde em que se prenunciava a
tempestade e notou o susto de uma veia saltada de néon no azulão escuro do céu.
Só um milagre poderia ensinar alguma coisa sobre esse mistério. Assim também
acontece no texto.
Acumular histórias, informações, falas,
não faz nenhum milagre. O que pega é o gatilho do texto, a faísca que bota fogo
na montanha de coisas que juntamos, o grude que garante a massa, quando tudo
finalmente faz sentido. Comparo o resultado dessa faísca que gera vida com um
esqueleto imantado. É a espinha dorsal da narrativa, que deve ser sólida pela
concepção, pela idéia que a sustenta. Os outros elementos são coadjuvantes,
grudam nele naturalmente como atraídos por um imã. É a informação, o detalhe, o
dado, a declaração.
O esqueleto imantado é a narrativa que
atrai com prazer a inocência das frases soltas e faz delas parte de si. O
encantamento provocado por um texto ou uma história vem dessa junção de
criaturas dispersas, que acabam formando algo único.
É importante termos essa arquitetura
bem clara na mente para evitar que intervenções secundárias ocupem o seu lugar.
No descampado, ao redor da fogueira, só os grandes narradores sabem manter
acesa essa força que por sua vez atrai olhares e atenções. É a mágica do
narrador vocacionado.
Vi uma reportagem na TV sobre
pescadores do nordeste. O personagem entrevistado, velho pescador de Fortaleza,
falava em vento misturado, do nordeste e sul ao mesmo tempo, e era debochado
constantemente pelo repórter. Foi a fagulha que faltava para a história que eu
guardava num canto. Descobri naquele instante que a mudança contínua era o
universo de quem estava sempre dependendo das águas para viver, e quem não
participava daquele mundo não conseguia entender esse redemoinho. Fiquei meses
com uma narrativa em potencial, querendo sair. Mas foi aquele clarão que juntou
as peças dispersas.
O talento dorme dentro de nós como Deus
na barca. Lá fora, a tempestade. Entramos em pânico, vamos afundar. Despertamos
então aquele que nem toma conhecimento do nosso susto. Ele se levanta, se
equilibra na precária superfície e faz um gesto. As nuvens se dissipam e
ressurge o dia. Ele então pergunta por nossa fé. Onde estava a fé quando a
barra pesou? Essa pequena e deslumbrante explicação de Alan Kardec para um
trecho do Evangelho serve para nos revelar o segredo. Acredite que vai
conseguir. Carregue-se. De repente, o céu se ilumina com um clarão. É tua alma
que implodiu diante do sagrado. Você atingiu a forja dos deuses.
*
Autor dos livros de poesia, “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No
mar, Veremos” (2001); e do romance: “Universo Baldio” (2004), entre outros.
Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha
atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
Este blog continua surdo. Há dez anos não sou editor de revistas em Florianópolis. Digo isso toda vez que colocam um texto meu aqui, mas não adianta. É desesperador. Já que não me escutam, quem sabe parem de postar meus artigos? Sou autor de muitos outros livros de poesia, mas quem se importa em mudar a porra das linhas deste blog surdo!!!?? PUTA QUE PARIU.Deu para escutar?
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