sábado, 17 de dezembro de 2016

Retrospectiva


* Por Flora Figueiredo


Porque a vida é feita de proibições,
eu não compus todas as canções,
não percebi a brisa suspirar,
eu esqueci cantigas de ninar,
dei chances demais à voz dos credos,
não rompi de vez todos os medos,
roubei do tempo um tanto de carinho,
não vi a flor amar o passarinho,
perdi o trem na curva do vertente
e não deixei o mel melar completamente.

Porque a vida é feita de proibições,
larguei o fio, soltaram-se os balões
deixei que o pião revirasse sozinho,
mandei que o zangão se zangasse baixinho,
desprezei a bruma que baixou o véu,
permiti à palavra dormir no papel,
evitei o desvio que atravessa a estrada,
não quis o desafio da ronda embriagada,
não li o poema do poeta maldito,
e não tive o dilema do beijo infinito.

Porque ainda há tempo para o encantamento,
quebre-se o vidro do sermão absoluto,
rompa-se a teia, reveja-se o estatuto,
que a primavera quer amar o chão de vento.


* Poetisa, cronista, compositora e tradutora, autora de “O trem que traz a noite”, “Chão de vento”, “Calçada de verão”, “Limão Rosa”, “Amor a céu aberto” e “Florescência”; rima, ritmo e bom-humor são características da sua poesia. Deixa evidente sua intimidade com o mundo, abraçando o cotidiano com vitalidade e graça - às vezes romântica, às vezes irreverente e turbulenta. Sempre dentro de uma linguagem concisa e simples, plena de sutileza verbal, seus poemas são como um mergulho profundo nas águas da vida.

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