sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Sotaque do Recife x fala no rádio e TV

* Por Urariano Mota


Raro as nossas vogais “E” e “O” se pronunciam como se escrevem nas sílabas. Nem, muito menos, como “ê” e “ô”, ave Maria. Aliás, “ave” é bem ilustrativa da variação, ora se pronuncia “ávi”, ora “avé”, como se escuta nos cânticos das igrejas católicas do Nordeste. Assim também na palavra Recife, que ora é Ricife, ora é Ré-cife. Ouça-se, a propósito, Alceu Valença cantando Voltei, Recife, e o Coral de Batutas de São José na música Evocação . 1, de Nelson Ferreira. O coral em suas vozes eternas canta “Ré-cife adór-mecia, ficava a sonhar...”.

Mais de uma vez pude notar que os apresentadores na mídia possuem uma língua diferente da falada. Mas a coisa se tornou mais séria quando percebi que, mesmo fora do trator absoluto do Jornal Nacional, os apresentadores locais do rádio e tevê falam também outra língua. O que me despertou foi uma reportagem sobre o trânsito na Avenida Beberibe, no bairro de Água Fria, que tão bem conheço. E não sei se foi um despertar ou um escândalo.

Na ocasião, o repórter e o apresentador na Rede Globo Nordeste somente chamavam Beberibe de Bê-Bê-ribe. O que era aquilo? É histórico, desde a mais tenra infância, que essa avenida sempre tenha sido chamada de Bibiribe, ainda que se escrevesse e se escreva Beberibe.

Ligo para a redação da tevê. Um jornalista me atende. Falo, na minha forma errada de falar, como eu saberia depois. Falo este absurdo, compreendi depois:
– Por que vocês falam bê-bê-ribe, em vez de Bibiribe?
– Porque é o certo, senhor. Bé-Bé é Bê-bê.
– Sério? Quem ensina isso é algum mestre da língua portuguesa?
– Não, senhor. O certo quem nos ensina é uma fonoaudióloga.

Ah, bom. Para o certo erram de mestre. Mas daí pude ver que a fonoaudióloga como autoridade da língua portuguesa é uma ignorância que vem da matriz, lá no Rio. Ou seja, assim me falou a pesquisa:

“Em 1974, a Rede Globo iniciou um treinamento dos repórteres de vídeo. Nesse período a fonoaudióloga Glorinha Beuttenmüller começou a trabalhar na Globo. Como conta Alice Maria, uma das idealizadoras do Jornal Nacional: ‘sentimos a necessidade de alguém que orientasse sua formação para que falassem com naturalidade’. Foi nesta época, que Beuttenmüller começou a uniformizar a fala dos repórteres e locutores espalhados pelo país, amenizando os sotaques regionais. No seu trabalho de ‘definição de um padrão nacional, a fonoaudióloga se pautou nas decisões de um congresso de filologia realizado em Salvador, em 1956, no qual ficou acertado que a pronúncia-padrão do português falado no Brasil seria a do Rio de Janeiro’”.

Isso é a morte da língua, amigos. É um extermínio das falas regionais na voz dos repórteres e apresentadores. Coração não é mais córa-ção, é côra-ção. Olinda, que o prefeito e todos olindenses chamam de Ó-linda, nos telejornais virou Ô-linda. Mas coisa mais bela não há que a juventude gritando no carnaval “Ó-linda, quero cantar a ti esta canção”. Já Ô-linda é de uma língua artificial, que nem é do sudeste nem, muito menos, do Nordeste. É outra coisa, um ridículo sem fim, tão risível quanto os nordestinos de telenovela, com os sotaques caricaturais em tipos de físico europeu.

O que antes era uma transformação do sotaque, pois na telinha os apresentadores falariam o português “correto”, atingiu algo mais grave: na sua imensa e inesgotável sabedoria, passaram a mudar os nomes dos lugares naturais da região. O tão natural Pernambuco, que dizemos Pér-nambuco, se pronuncia agora como Pêr-nambuco.  E Petrolina, Pé-tró-lina, uma cidade de referência do desenvolvimento local, virou outra coisa: Pê-trô-lina. E mais este “Nóbel” da ortoépia televisiva: de tal maneira mudaram e mudam até os nomes das cidades nordestinas, que, acreditem, eu vi: sabedores que são da tendência regional de transformar o “o” em “u”, um repórter rebatizou a cidade de Juazeiro na Bahia. Virou JÔ-azeiro! O que tem lá a sua lógica: se o povo fala jUazeiro, só podia mesmo ser Jô-azeiro.

Por isso entendemos como o sotaque do povo do Recife virou capítulo da fonética, ou melhor, de uma nova ortofonia: virou a fala correta, que nunca jamais falaram ou falam os nativos da cidade.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros


Um comentário:

  1. Só existe o correto escrever. O falar não existe. Aqui no norte de Minas falamos baianeiro e somos criticados pelos belorizontinos.Dizemos câneta, câmisa, cuzinha, murango, culhé, mulhé. Mas também dizemos Ôlinda, Pêrnambuco. No entanto dizemos Pétrólina e Juazeiro, pois vem da fruta juá. Adoro essa diversidade e é crime sim, querer nos uniformizar, venha de onde vier a ordem.

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