quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Arqueologia literária


A produção literária no mundo é imensa e impossível de se quantificar, a despeito dos recursos de informação que hoje temos ao nosso dispor, principalmente dessa maravilha, que é a internet. Diariamente, nos mais diversos recantos do Planeta, são escritas bateladas e mais bateladas de romances, contos, novelas, poesias, ensaios, peças teatrais etc. etc. etc., à imensa maioria dos quais, por mais bem-informados que sejamos e por mais que gostemos de ler, jamais teremos acesso. Há uma série de impedimentos que vão, desde a barreira da língua, à pobreza de determinadas sociedades nacionais, que também têm, com toda a certeza, seus grandes escritores.

Salvo algum (feliz) acidente, raros intelectuais (se é que exista algum) conhecem, por exemplo, algum bom romancista mongol (ou afegão, vietnamita, coreano etc.). No entanto, esses países os têm, e, provavelmente, em profusão. Não conheço uma só pessoa que saiba um único verso de um poeta letão, qualquer que seja, (ou costarriquenho, ou boliviano, ou chadiano etc.). Mas eles existem aos montes. E escrevem coisas maravilhosas e marcantes. E vai por aí afora.

Os escritores que ainda conseguem, graças ao empenho de suas editoras, algum acesso ao grande público, são europeus (mas não de toda a Europa, claro), norte-americanos e, uma vez ou outra, japoneses. E mesmo destes, menos de 1% se tornam best-sellers mundiais, tamanha é a quantidade de excelentes artistas que se dedicam às letras e apesar da indústria editorial ser uma das mais prósperas e de maior avanço no mundo.
E as coisas já foram piores, claro. Antes que Johann Guttenberg inventasse a imprensa, livros eram uma raridade. Não existia, certamente, nada que sequer lembrasse uma indústria editorial. As obras eram escritas à mão, reproduzidas em edições limitadíssimas (muitas de não mais do que dez volumes), por copistas, em geral monges, que dedicavam toda a vida a esse mister. Os monastérios, portanto, eram as editoras daqueles tempos remotos.

Há não muito, apesar do fantástico avanço editorial, para se ter acesso a determinados livros, mesmo os já traduzidos e lançados no Brasil, precisávamos ou adquiri-los nas livrarias e principalmente nos sebos (isto, quando havia dinheiro para essa necessidade, que alguns tolos ainda julgam ser mero “luxo”) ou fazer verdadeiras romarias pelas bibliotecas, despendendo, não raro, anos nessa tarefa.

Hoje, isso já não é necessário. Basta acessarmos o Google, digitarmos o nome de qualquer escritor, para que, de imediato, tenhamos, salvo raríssimas exceções, uma infinidade de links que nos remetem a trechos (quando não aos textos completos) dos seus principais livros, ou à sua biografia, ou a comentários e críticas feitos sobre os mesmos. Em decorrência disso, incorporei uma nova atividade, às tantas que já tenho como jornalista e amante das letras: a arqueologia literária.

Como um arqueólogo, em busca de cidades, de civilizações antiqüíssimas, soterradas por séculos, quando não por milênios, descubro, dia a dia, por exemplo, romancistas que jamais sonhei que existissem e que, em pouco tempo, se me tornam familiares. Ou acho versos de poetas, totalmente desconhecidos para o grande público, de países exóticos e distantes, clássicos ou contemporâneos em suas respectivas culturas, cuja descoberta é recebida com a mesma euforia dos que desenterram e trazem à luz partes obscuras da história da humanidade. O mesmo vale para contistas, novelistas, cronistas etc.etc.etc.

É emblemático o que me aconteceu, por exemplo, em relação a Piet Hein. Há pouco mais de duas décadas, um amigo emprestou-me um livreto, com poemas desse autor. Ao lê-los, entusiasmei-me e escrevi uma crônica a respeito, que divulguei fartamente. Na minha empolgação, não anotei, sequer, o título da referida obra, quanto mais referências sobre esse poeta. Não conhecia absolutamente nada a seu respeito. Dia desses, porém, relendo o referido texto, quis saber tudo o que fosse possível sobre esse intelectual. Acessei o Google e...surpresa!

Em questão de uma semana, familiarizei-me com ele. Era como se fosse um dos tantos poetas boêmios que freqüentam a minha casa, e cujas poesias conheço de sobejo, de cor e salteado. Fiquei sabendo, por exemplo, que se trata de um lendário herói dinamarquês, por seu comportamento patriótico quando da invasão  nazista da Dinamarca, durante a Segunda Guerra Mundial. Que nasceu em Copenhague, em 16 de novembro de 1905. Que fazia literatura (e da boa) como hobby, já que se tratava de eminente cientista, matemático e inventor. Que suas invenções o levaram para a área de Engenharia da Universidade Técnica da Dinamarca. Que entre tantos dos seus inventos, o mais célebre é o Cubo-Soma, que ainda hoje é um dos mais populares brinquedos inteligentes em todo o mundo.

É claro que no espaço tão restrito desta crônica é impossível reproduzir, sequer, um resumo razoável da sua riquíssima biografia. Piet Hein começou a escrever poemas e pequenas frases, apelidadas de “grooks”, como mensagens de coragem à população, quando vivia na clandestinidade, fugindo das SS nazistas. Para tanto, valia-se de um pseudônimo: Kumbel. Ainda durante a guerra, fugiu para a Inglaterra. Viveu, também, nos Estados Unidos e em alguns países da América do Sul. Passou pelo Brasil, mas aqui era (e para a maioria ainda é) um “ilustre” desconhecido. Morreu, na sua terra natal, três anos depois que escrevi a referida crônica a seu respeito, em 18 de abril de 1996.

Hoje, graças ao Google, sou quase um expert da vida e da obra desse lendário e popular dinamarquês. Ele é, amiúde, confundido com alguns homônimos. Como, por exemplo, com Piet Hein Bakker, diretor da Endemol portuguesa. Destaque-se que essa empresa é a detentora de inúmeros reallity-shows para a TV, entre os quais esta imensa bobagem, que é o Big Brother. Outra personalidade com o mesmo nome é o político do Partido Democrata Cristão da Holanda, Piet Hein Donner, ex-ministro da Justiça desse país, envolvido, tempos atrás, numa polêmica sobre religião.
            
Nenhum deles, todavia, tem a importância desse eclético dinamarquês, cuja obra merece ser lida, relida, estudada, dissecada  e divulgada, pela sua qualidade e conteúdo. Como se vê, esta arqueologia literária tem me permitido uma abertura de horizontes, uma visão muito mais ampla e profunda não somente da literatura, mas, e principalmente, sobre o mundo, o homem e a vida. E tudo sem que eu precise despender um único centavo na compra de livros (isso quando encontráveis e traduzidos) e sem ter que empreender intermináveis, e não raro frustrantes,  romarias a inúmeras bibliotecas.

Boa leitura!

O Editor.


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