domingo, 12 de junho de 2016

Ideias consoladoras

* Por Antonio Austregésilo


Quase todos sofrem na existência; raros conscientes não têm padecido os acúleos das dores morais; e já há milênios que a metáfora religiosa afirma ser o mundo “vale de lágrimas”.

Há, como todos sabem, sentimentos depressivos, magoantes de origem real, e outros de fonte puramente nervosa. Em ambas as hipóteses, a consciência sofre porque se apercebe das dores verdadeiras, ou imaginárias. A dor é um estímulo e um inimigo: conduz à reação, mas aniquila, às vezes, a personalidade moral. Sofremos mais pelos sentimentos do que pela razão propriamente dita. A sensibilidade de cada um aumenta ou diminui, minora ou agrava os padecimentos afetivos. Diante, porém, das amarguras da vida é sempre possível evocar ideias consoladoras para os padecimentos físicos e morais.

Refere-nos Liebault que o filosofo Kant, quando tomado de fortes crises de palpitações e dispneia, evocava ideias agradáveis e felizes e os sofrimentos se dissipavam progressivamente, e que o famigerado pensador Bacônio, quando ia arrancar um dente, conduzia os pensamentos para as coisas alegres e quase não sentia ou percebia dor. Muitos exemplos são repetidos por colendos observadores. Na própria dor física há um elemento psíquico indiscutível, constituído pelo medo, ou pavor. Quando nos aproximamos da cadeira do dentista ou quando somos ameaçados do bisturi do cirurgião, ou da agulha de uma simples injeção subcutânea, julgamos que as dores são maiores do que sucede na realidade. Quanta vez, após pequena operação não sentimos aquilo que tanto temíamos!

As ideias alegres e consoladoras devem surgir no limiar da consciência quando há sofrimentos físicos ou morais. Os conselhos de Feuchterlebens e de São Francisco de Sales são a este respeito dignos de leitura atenta, pelos timoratos e desanimados da vida. Sofrer é em regra o pábulo de todos os corações. Não creio que haja alguém mais do que outrem. Os males morais computam-se habitualmente por igual quinhão por todos.

Naturalmente, quanto maior a nau, maior a tormenta. O otimista razoável não reconhece a ausência da dor na existência; ao contrário, assinala-a, mas esforça-se por vencê-la. Neste particular, o otimismo, o estoicismo e a religião cristã muito se parecem. A dor física e a moral são contingências da vida, e quanto mais esta se aperfeiçoa, mais o organismo se torna a elas sensível. O nosso dever está em sempre afastá-las, e não cultivá-las.

Cada vez que surgir dentro da alma sofrimentos sinceros e profundos devemos evocar as ideias consoladoras, substitutivas das mágoas insolúveis. A saudade pode exalar cheiros venenosos, ou perfumes doces. Depende do cultivo moral da planta; depende, pois, do agricultor. Não poderemos dizer à mãe amantíssima, à esposa inconsolável, ao pai extremoso que arranquem subitamente do peito as setas que lhes malferem o coração, pela morte ou desgraça dos entes estremecidos. Porém, podemos ensinar-lhes as evocações das ideias consoladoras, de paz, de caridade, de justiça, de razoabilidade, e a grande resignação, que constitui a nobreza da alma.

Nietzsche, no fulgor impiedoso da cultura da energia, aconselha o estrangulamento da dor moral, porque a resignação, a piedade humana e outros sentimentos religiosos são covardias da alma. Se o homem realmente pudesse ser o ente vigoroso de ânimo e nobre de espírito, indiferente aos males da vida e aos desgarrões da fortuna, segundo o conceito de Sêneca, de Kant e até certo ponto de Nietzsche, então a humanidade teria atingido à saúde moral absoluta. São, porém, raros os que se comportam assim diante das dores e dos desfortúnios. Esforcemo-nos sempre para minorar os desgostos e padecimentos da alma; e procuremos embotar o amor próprio, diminuir a impetuosidade das paixões, e respirar o ar puro onde florejam a resignação e as ideias consoladoras. A lágrima e o sorriso vivem a captar a simpatia da humanidade. Não sei por que o homem diz gostar mais do sorriso, apesar de viver mais tempo ao lado da lágrima.

Toda vez, porém, que penetrar dentro da morada dos nossos sentimentos o hóspede incômodo que é a dor, se não houvermos forças para enxotá-lo, que o substituamos, aos poucos, pelas ideias consoladoras, pelas ideias do bem alheio, que é a mais nobre de todas as ideias.

Preceitos e conceitos, 1921.


* Professor e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras.

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