sexta-feira, 10 de junho de 2016

Estilo e forma literária

* Por João Ribeiro


“Teu sangue - rico esmalte de tua alma”. Ferreira                                                                        

“O artista pertence ao seu livro e não o livro ao artista”. Novalis                                                                           

Luís Boerne, que é um dos poucos estilistas alemães, cousa rara ali e que na sua própria frase “se houvera de contá-los pelos dedos ainda estes seriam sobejos”, entende que o verdadeiro estilo, o estilo do homem de gênio, em certa maneira é falho e pobre de beleza e de outros agrados; porque no estilo é cousa muito principal o caráter, e "é raro que um homem de caráter seja de trato amável". Assim o estilo.

Cícero escrevia excelentemente, mas não há estilo seu, porque é fora de dúvida que foi um mau caráter e um bandoleiro político. Tácito, ao contrário, não tem a pompa de Cícero, os seus períodos são breves e atalhados como que de cólera: mas deixou um estilo e era ao mesmo tempo grande homem de caráter.

Esse modo de ver de Luís Boerne coincide com o de Schopenhauer quando este diz (lembrando-se ao certo de Tácito) que a ironia é o estilo da História.

O que em todos, porém, assinala e singulariza o estilo é a paixão e o sentimento. E é razão que se diga tortura a arte de pensar e escrever, porque ela ondula que não corre e tem inflexões súbitas que não linhas certeiras e frias. A indignação tem o seu método próprio e nenhuma forte comoção passa além e extravasa d'alma sem número e medida, e até sem as mesmas razões geométricas do compasso musical.

Não reside o estilo na beleza ou na graça, mas na força e ainda na grosseria e rudeza da força. Suave ou rústica, polida ou tosca, pouco importa.

Almas que sofrem são de si mesmas sonoras, como cordas que, se acaso tremem e vibram, apagam-se e fundem-se indecisas no ar. As dores que o espírito tornou mudas para os profanos, não emudeceram; em seu recolhimento espalharam pelo cristal d’alma as suas ressonâncias.

O nosso exemplo clássico é Fr. Luís de Sousa, reputado o maior dos nossos estilistas e também um dos homens de mais férrea vontade e caráter da nossa raça. Não se há mister saber (e até hoje se ignora ainda) a causa que levara aquele homem de guerra, como ele o foi, a ele e a esposa, a separarem-se ambos e buscarem, cada um, a soledade dos claustros.

Podendo dizer nunca o disse e nunca sequer deixou transluzir em qualquer rasgo, na mais breve linha, o indício ou argumento da tragédia incógnita da sua vida. Era, pois, um homem de grande caráter e foi, pois, também um grande estilista.

A música e a sonoridade da sua arte sempre nos diz alguma cousa daquele mistério.

A sua alma é numerosa, musical, afinada a todos os sopros, como harpa eólia; qualquer assunto que a toque quebra-se e desfaz-se em ritmos; ideias que por ela passem saem já com as suas curvas, e suas elipses certas, como se foram mundos despegados de um sol, no momento da criação deles.

E isso nos temas mais humildes onde não há matéria para atavios e ornatos. Abra-se a primeira página da sua Vida do arcebispo e logo se deparam períodos como este, todo feito de hendecassílabos, e que por isso disporei em versos:

Assim o tinha dito muito antes
falando de Jacó e seu irmão:
que amara um e aborrecera outro.

E todo o livro é uma perpétua sonoridade, na qual vários metros se compõem e se concertam, se atam e desatam, se travam ou se apartam como em “numeroso canto”.

Leiam à página 6 da mesma Vida, seguidamente:

Foi fácil de persuadir o valeroso cavaleiro.
Entra no rio, lança sua gente em terra,
fortifica-se da parte ocidental
por todo aquele teso, onde agora

etc., etc.

Não há mister mais que um módulo ou matiz para os descontar como poesia de lei. Neste momento em que escrevo, tomo do segundo volume e abro acaso (Cap. VI):

Deu-lhes o Reitor um sacerdote
virtuoso e sisudo, que os criava...

Este é, decerto, o grande estilista: e é cousa para mim sem dúvida e iniludível que nem mesmo Camões ou o Vieira, espíritos mais cultos e poderosos, se lhe podem emparelhar no estilo e, que é o mesmo, na força pessoal e no caráter.

É muitas vezes o ritmo ou a simetria, quando há excesso, um defeito. Mas é sempre o sinal da força e, por assim dizer, o cristal quando comparado ao líquido informe. Os rascunhos que ainda hoje existem daquele grande exemplar do estilo mostram que nenhuma frase lhe saía acabada sem passar pelos crivos geométricos de uma sereia. Não era um Lieder ohne Wörter.

(Páginas de estética, 1905)


* Jornalista, crítico, filólogo, historiador, pintor e tradutor, membro da Academia Brasileira de Letras.

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