Dicionários
da língua portuguesa no século XIX
* Por
Ramiz Galvão
Durante os séculos XV,
XVI e XVII poliu-se e aperfeiçoou-se o idioma vernáculo nas mãos de exímios
escritores, que ainda hoje são modelos de bem dizer: todavia mui pouco de
proveitoso se fez em relação a esta parte essencialíssima da língua, que trata
de daguerreotipar à luz de preceitos uniformes e bem estabelecidos os elementos
da palavra.
São riquíssimo tesouro
os livros clássicos de João de Barros, Bernardes, Fr. Luís de Sousa e Vieira,
ninguém o contesta; mas, no que respeita à ortografia, sua incerteza e
imperfeição são enormíssimas, nem há crítico amador destes estudos que não o
confesse. Sem regras sistemáticas, sem código por onde houvessem de dirigir-se,
escreviam eles diferentemente a mesma palavra: ora seguindo o uso, ora a
etimologia, ora o som, não curavam das inúmeras corruptelas, por que no falar
comum das inúmeras corruptelas, por que no falar comum passam os vocábulos, e,
o que é mais, não atendiam sequer aos preceitos de analogia que devem presidir
à formação das palavras, eles, os escritores que de fato se constituíam por seu
excepcional merecimento os legisladores da língua.
A necessária
consequência deste procedimento foi que, em pontos de ortografia, o testemunho
dos clássicos portugueses, por contraditório e irracional, se não pode hoje
invocar como autoridade. É bastante abrir qualquer de suas obras, tais como
apareceram nas edições originais, para ter-se a demonstração cabal deste
asserto.
Com o andar dos
tempos, é verdade, um ou outro gramático pretendeu legislar nesta matéria, estabelecendo
preceitos que servissem de norma ao correto escrever dos vocábulos portugueses.
“Foram outras tantas icárias quedas, disse com muita razão José Feliciano de
Castilho. A uns faltou o método, a outros a coragem.”
Hoje, ao alvorecer do
século XX, que vemos neste particular?
Em matéria de
ortografia e prosódia acaso satisfazem os dicionários portugueses, que a
mocidade diariamente maneia? São porventura exemplares uniformes os escritos
mais bem acabados das hábeis penas contemporâneas d’aquém e d’além-mar?
Longe disto, cada qual
grafa como entende, e os próprios glotólogos discutem sem resultado prático as
vantagens dos sistemas fonético, etimológico e eclético, que correspondem às
três correntes de opinião nesta matéria.
Os dicionários da
língua portuguesa, esses em verdade melhorar sensivelmente no último quartel de
1800, corrigindo em parte as inúmeras antinomias e os desacertos
inqualificáveis, que infestavam as obras de Bluteau, Moraes, Constâncio,
Roquete, Faria e Lacerda.
Os léxicos de Vieira,
Caldas Aulete, Adolfo Coelho e C. de Figueiredo significam um melhoramento
real, que estamos longe de desconhecer.
Muito mais copiosos,
porque aceitaram o bom alvitre de registrar quase toda a tecnologia científica
que nestes últimos 50 anos cresceu desmesuradamente; muito mais lógicos, porque
obedeceram a princípios preestabelecidos, senão com todo o rigor, ao menos com
regular orientação; muito mais exatos nas definições dos vocábulos e
incomparavelmente mais bem avisados na etimologia deles, esses livros merecem
apreço e devem ser destacados da primeira coorte de dicionaristas.
Mas ainda assim, como
estão longe de haver completado a obra meritória de regularizar de vez a
ortografia e a ortoépia da língua portuguesa, qual convém a uma língua culta!
Não insistiremos nos
erros e nas contradições de Bluteau, Moraes, Constâncio, Roquette, Faria e
Lacerda, porque isso nos levaria demasiado longe, e em parte foi feito esse
trabalho de crítica na introdução do Dicionário de Aulete. Lancemos
simplesmente rápido olhar sobre a obra lexicológica dos mais modernos, e
ver-se-á a toda a luz que o problema não ficou resolvido, apesar da séria e
reconhecida competência que os distingue. Segue-se a análise do Dicionário de
Fr. Domingos Vieira; do Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, de F. J.
Caldas Aulete, publicado em 1881, do Dicionário manual etimológico da língua
portuguesa contendo a significação e prosódia, de F. Adolfo Coelho, e do Novo
dicionário da língua portuguesa, de Cândido de Figueiredo, publicado em 1899.]
(Vocabulário
etimológico, ortográfico e prosódico das palavras portuguesas derivadas da
língua grega, 1909)
*
Médico, professor, filólogo, biógrafo e orador, membro da Academia Brasileira
de Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário