sábado, 4 de junho de 2016

Dicionários da língua portuguesa no século XIX

* Por Ramiz Galvão


Durante os séculos XV, XVI e XVII poliu-se e aperfeiçoou-se o idioma vernáculo nas mãos de exímios escritores, que ainda hoje são modelos de bem dizer: todavia mui pouco de proveitoso se fez em relação a esta parte essencialíssima da língua, que trata de daguerreotipar à luz de preceitos uniformes e bem estabelecidos os elementos da palavra.

São riquíssimo tesouro os livros clássicos de João de Barros, Bernardes, Fr. Luís de Sousa e Vieira, ninguém o contesta; mas, no que respeita à ortografia, sua incerteza e imperfeição são enormíssimas, nem há crítico amador destes estudos que não o confesse. Sem regras sistemáticas, sem código por onde houvessem de dirigir-se, escreviam eles diferentemente a mesma palavra: ora seguindo o uso, ora a etimologia, ora o som, não curavam das inúmeras corruptelas, por que no falar comum das inúmeras corruptelas, por que no falar comum passam os vocábulos, e, o que é mais, não atendiam sequer aos preceitos de analogia que devem presidir à formação das palavras, eles, os escritores que de fato se constituíam por seu excepcional merecimento os legisladores da língua.

A necessária consequência deste procedimento foi que, em pontos de ortografia, o testemunho dos clássicos portugueses, por contraditório e irracional, se não pode hoje invocar como autoridade. É bastante abrir qualquer de suas obras, tais como apareceram nas edições originais, para ter-se a demonstração cabal deste asserto.

Com o andar dos tempos, é verdade, um ou outro gramático pretendeu legislar nesta matéria, estabelecendo preceitos que servissem de norma ao correto escrever dos vocábulos portugueses. “Foram outras tantas icárias quedas, disse com muita razão José Feliciano de Castilho. A uns faltou o método, a outros a coragem.”

Hoje, ao alvorecer do século XX, que vemos neste particular?

Em matéria de ortografia e prosódia acaso satisfazem os dicionários portugueses, que a mocidade diariamente maneia? São porventura exemplares uniformes os escritos mais bem acabados das hábeis penas contemporâneas d’aquém e d’além-mar?

Longe disto, cada qual grafa como entende, e os próprios glotólogos discutem sem resultado prático as vantagens dos sistemas fonético, etimológico e eclético, que correspondem às três correntes de opinião nesta matéria.

Os dicionários da língua portuguesa, esses em verdade melhorar sensivelmente no último quartel de 1800, corrigindo em parte as inúmeras antinomias e os desacertos inqualificáveis, que infestavam as obras de Bluteau, Moraes, Constâncio, Roquete, Faria e Lacerda.

Os léxicos de Vieira, Caldas Aulete, Adolfo Coelho e C. de Figueiredo significam um melhoramento real, que estamos longe de desconhecer.

Muito mais copiosos, porque aceitaram o bom alvitre de registrar quase toda a tecnologia científica que nestes últimos 50 anos cresceu desmesuradamente; muito mais lógicos, porque obedeceram a princípios preestabelecidos, senão com todo o rigor, ao menos com regular orientação; muito mais exatos nas definições dos vocábulos e incomparavelmente mais bem avisados na etimologia deles, esses livros merecem apreço e devem ser destacados da primeira coorte de dicionaristas.

Mas ainda assim, como estão longe de haver completado a obra meritória de regularizar de vez a ortografia e a ortoépia da língua portuguesa, qual convém a uma língua culta!

Não insistiremos nos erros e nas contradições de Bluteau, Moraes, Constâncio, Roquette, Faria e Lacerda, porque isso nos levaria demasiado longe, e em parte foi feito esse trabalho de crítica na introdução do Dicionário de Aulete. Lancemos simplesmente rápido olhar sobre a obra lexicológica dos mais modernos, e ver-se-á a toda a luz que o problema não ficou resolvido, apesar da séria e reconhecida competência que os distingue. Segue-se a análise do Dicionário de Fr. Domingos Vieira; do Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, de F. J. Caldas Aulete, publicado em 1881, do Dicionário manual etimológico da língua portuguesa contendo a significação e prosódia, de F. Adolfo Coelho, e do Novo dicionário da língua portuguesa, de Cândido de Figueiredo, publicado em 1899.]

(Vocabulário etimológico, ortográfico e prosódico das palavras portuguesas derivadas da língua grega, 1909)


* Médico, professor, filólogo, biógrafo e orador, membro da Academia Brasileira de Letras.

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