Amigo urso
O que você faria se um
certo número de cartas que você remetesse a um amigo da sua irrestrita
confiança, todas em caráter confidencial, subitamente aparecesse na imprensa,
com enorme estardalhaço? Como você reagiria, mesmo que elas não contivessem
nada de comprometedor à sua imagem, mas se você fosse uma pessoa rigorosamente
ciosa quanto à privacidade e detestasse todo tipo de publicidade?
Da minha parte,
ficaria furioso e certamente chamaria o sujeito às falas. E se já estivesse
morto, meus herdeiros tomariam esta e outras providências, inclusive legais. É
verdade que evito falar qualquer coisa que possa vir a me comprometer no
futuro, quanto mais escrever. Mas, se escrevesse a um amigo de confiança,
precisaria, sequer, lhe dizer para não divulgar essa correspondência? Creio que
isso já estaria implícito na nossa amizade, não é mesmo?
Pois foi esse tipo de
sacanagem que fizeram com o escritor Jerome David Salinger, mais conhecido como
J. D. Salinger, que odiava imprensa, badalação, publicidade e exposição da sua
privacidade em público. E por alguém que sempre se disse seu amigo, o que é
pior. Amizade desse tipo eu dispenso, estou fora. Caramba, imaginem se esse
indivíduo fosse seu inimigo?!
Dez das cartas que
Salinger escreveu, por anos, a Michael Mitchel, foram, a partir de 16 de março
de 2010, expostas no Museu e Biblioteca Morgan, em Manhattan, Nova York.
Recorde-se que o autor de “O apanhador no campo de centeio” defendeu, em vida,
com unhas e dentes, irrestrito respeito à sua privacidade. Espantou, por anos,
os curiosos e quetais dos arredores de sua casa, que mais parecia uma fortaleza
medieval. Estava no seu direito, claro.
Por que digo que quem
trai uma amizade é “amigo urso”? Vocês, certamente, já viram em circo, ou na
TV, esse enorme e forte animal. De longe, parece dócil e amigável e não passa
pela nossa cabeça que possa atacar alguém e muito menos matá-lo.
Alguns domadores
arriscam-se, até, confiando nos anos de treinamento dessas feras, a permitir
que estas os “abracem” em exibições para platéias. A maioria escapa incólume do
tal abraço. Alguns, porém, têm a desventura de terem as costelas esmagadas como
se fossem gravetos secos e os pulmões perfurados pelas costas, pelas garras
desses animalões, alguns dos quais, quando de pé, chegam a atingir quase três
metros de altura. Eu, hein!!!
Determinados amigos
são assim. Parecem afáveis e cordiais, totalmente inofensivos, mas quando nos
abraçam, podem quebrar nossas costelas e perfurar nossos pulmões. Em vez de
abraços amigáveis, nos dão golpes homicidas e destrutivos. Pois é, o tal
“amigo” de Salinger agiu assim em relação ao escritor.
Michael Mitchel é
artista e desenhou a capa da primeira edição de “O apanhador no campo de
centeio”. O romancista gostava dele e parecia confiar no tal sujeito
Chegou a confidenciar a parentes que ele e sua esposa eram os “amigos
mais próximos” que tinha. E não só proximidade física, já que eram vizinhos,
mas, sobretudo, a afetiva.
Essas dez cartas,
postas em exposição, foram doadas, à Morgan, em 1998, com a recomendação
expressa de serem mantidas em estrito sigilo enquanto o romancista vivesse.
Fosse Mitchel, porém, amigo leal, teria comunicado o escritor sobre a doação
(quando não, lhe pedido autorização para isso). Não comunicou, como acabou
admitindo. Portanto, traiu-o!
O responsável por
textos históricos da instituição, Declan Kelly, admitiu na ocasião, à agência
de notícias EFE, que “Salinger ficaria muito incomodado com a mostra” se
estivesse vivo. Mas justificou-se: “Agora não há motivos para não compartilhá-las”
(no caso, as cartas). “É um tributo a um dos grandes autores norte-americanos”,
acrescentou.
Na verdade, as cartas
não contêm nada de comprometedor à imagem de Salinger, como já salientei. Nelas
o escritor expressa, por exemplo, opiniões sobre artistas – como o ator
Lawrence Olivier, de quem disse tratar-se de “pessoa muito simpática” e a atriz
Vivian Leigh, a quem chamou de “encantadora”, os quais conheceu numa festa em
Londres e com quem debateu aspectos da vida e da obra de Franz Kafka – fala de suas
visões sobre o amor, comenta textos que estava escrevendo (que nunca, no
entanto, publicou), refere-se ao casamento e reitera diversas vezes sua aversão
à publicidade, entre tantos outros assuntos, até mais triviais e corriqueiros.
Bem, é verdade que após
muitos anos de amizade, Salinger já havia rompido relações com Mitchel, e muito
antes da morte,. Desconhece-se a versão do escritor sobre os motivos do
rompimento. Só há a do “amigo urso”. E,
segundo este, Salinger pôs fim à amizade de anos somente porque lhe pediu “uma
cópia autografada da primeira edição de ‘O apanhador no campo de centeio’”.
Será?!
Embora o escritor
fosse, mesmo, sujeito esquisitão, é difícil de acreditar que a ruptura de uma
amizade tão longa tenha se dado apenas por causa disso. Enfim... nunca se
saberá se esta é a verdade, já que, quem poderia dar versão esclarecedora a
respeito há já bom tempo deixou o mundo dos vivos (se é que existe algum outro
mundo destinado exclusivamente aos mortos, no que não creio).
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Inacreditável que um amigo ou ex-amigo faça isso. Mas fez.
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