Fidelidade a um compromisso de ocasião
As circunstâncias, ou seja, a realidade, não raro nos força a
agir contra alguma de nossas mais profundas e arraigadas convicções. Essas
ações acabam sendo alvos de invariáveis críticas e condenações de quem não
esteja envolvido, nem mesmo indiretamente, na questão. Afinal, como diz o
povão, “pimenta nos olhos dos outros é colírio”. Contudo, esses críticos de
ocasião (normalmente mal amados ou não amados), em circunstâncias iguais aos
dos alvos de suas recriminações, agem exatamente da mesma forma. Por isso, é
perigoso dizer “dessa água não beberei”. Beberá, sim, dependendo do tamanho da
sua sede.
Estas considerações, este prolixo “nariz de cera” como se
diz no jargão jornalístico para introduzir determinada matéria, fugindo da
convencional exigência dos manuais das redações de jornais (aos quais sempre me
opus), vêm a propósito da ação do casal Mary e Percy Shelley em relação ao
casamento. Ademais, estes comentários pouco ou nada têm a ver com jornalismo.
São, quando muito (ou pelo menos pretendem ser) um livre e descomprometido
exercício literário.
Tanto a escritora, autora do clássico “Frankenstein: o
moderno Prometeu”, quanto o poeta romântico, sempre se manifestaram, privada ou
publicamente, contrários ao casamento (pelo menos como era encarado no seu
tempo). Embora não concorde com essa postura (e tenho argumentos sólidos para
discordar, que não explanarei neste espaço, porque não vem ao caso), eu a
entendo. O casal, em suma, embora se amando, e muito, defendia o amor
absolutamente livre, sem nenhum “certificado de propriedade”. Mary, embora “liberada”
pelo parceiro para escolher quem e quantos homens quisesse, manteve-se fiel ao
companheiro até a morte, mesmo após ter enviuvado. Já seu amante teve vários
casos, nenhum, porém, duradouro ou sério. Suas cartas comprovam que nunca
deixou de amar Mary. Contudo, mesmo se opondo, reservada e publicamente, ao
casamento, ambos se casaram. Por que? Em decorrência das circunstâncias.
Quando a primeira mulher de Percy, Harriet Westbrook,
cometeu suicídio (nunca bem explicado), este quis, obviamente, assumir a guarda
dos dois filhos gerados com ela. Todavia a família da legítima esposa, opôs-se,
terminantemente, a essa intenção. Dificultou ao máximo todos os esforços do pai
nesse sentido. A questão, como seria de se esperar, foi parar na justiça. Mary
(que então era, ainda, somente Mary Godwin) apoiou totalmente a pretensão do
poeta, então ainda só seu amante. Para melhorar a posição de Percy no caso,
seus advogados aconselharam o casal a se
casar, de papel passado e tudo para impressionar o juiz que iria julgar a
questão. Assim, ele e Mary (que estava grávida de novo, destaque-se), de fato
se casaram. A cerimônia ocorreu em 30 de dezembro de 1816, na Igreja de St.
Mildred, Bread Street, em Londres. O pai da escritora, William Godwin e a
madrasta dela compareceram ao evento. Aliás, o casamento acabou de vez com a
rusga na família, que durava desde quando o casal havia fugido para a França
para ficar junto.
Mas essa providência, sugerida pelos advogados, não
impressionou a justiça. Assim,.em março de 1817 o Chancery Court julgou Percy
Shelley moralmente inapto para assumir a custódia de seus filhos. Colocou-os
sob a tutela da família de um clérigo, sem qualquer parentesco com nenhuma das
partes. O casal, mesmo se opondo ao casamento e embora tendo se casado pelo motivo
que citei, jamais cogitou em se separar. Apesar da renitente infidelidade de
Percy, que Mary, se não concordava, pelo menos admitia, permaneceu junto até a
trágica morte do poeta em um naufrágio ocorrido na Itália. Publicamente, nenhum
dos dois mudou seu discurso. Porém, reitero, também não manifestou a mais
remota vontade de romper os vínculos oficiais.
Mary Shelley nunca deixou de defender o sexo livre, mesmo
que homossexual, desde que consensual, conforme comprovam centenas de artigos
que publicou na imprensa de seu país. Em
1827, por exemplo, ela foi parte de um esquema que permitiu que a amiga Isabel
Rodrigues e a amante dela, Mary Diana Dods (que escrevia sob o nome de David
Lyndsay), embarcassem para uma vida a dois na França como homem e mulher. Com a ajuda de um amigo, obteve, inclusive,
os passaportes falsos para o casal homossexual. Chama a atenção, porém, que
mesmo favorável ao sexo livre, Mary Shelley, pelo que consta, nunca o praticou,
nem antes do casamento, nem durante ele e nem mesmo quando ficou viúva.
Permaneceu fidelíssima a Percy, ao qual, pelo visto, jamais deixou de amar.
Boa leitura.
O Editor.
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Uma convicção pessoal que não a atrapalhou defender os interesses coletivos.
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