Estilo emperiquitado
* Por Deonísio da Silva
"O estilo é o próprio homem". A
frase foi extraída do discurso de posse de Georges Buffon na Academia Francesa.
Desde o século XVIII tem servido para ilustrar a afirmação de que, à semelhança
da fala, também a escrita tem variações, às vezes muito sutis, que permitem
identificar seu autor.
Rui Barbosa, mesmo em artigos escritos
especialmente para os jornais, esquecia que o público era outro e os leitores
não tinham obrigação de fazer um curso, ainda que breve, para entendê-lo.
"O panfleteiro descachola de sua cachimônia estes comentários
burlescos", escreveu certa vez.
É um estilo que lembra o do professor
Astromar, de Roque Santeiro, que ao
chegar à casa da namorada pergunta: "posso penetrar?”. No contexto, a
questão tem uma engraçada ambigüidade, pois a moça é virgem. Penetrar, dito em
tal contexto, torna inevitável a referência implícita ao ato sexual. Na
televisão, resultou em divertida cena, repetida a cada visita que fazia à
namorada, vivida pela atriz Lucinha Lins.
Mas se penetrar é palavra de todos
conhecida, variando, porém, o significado de acordo com o contexto em que
aparece, “panfleteiro” e “descacholar” continuam ausentes dos dicionários. O
grande jurista, querendo desqualificar o texto que criticava, referiu-se ao
autor como “panfleteiro”, recusando as opções que a língua portuguesa já
oferecia desde o século 19: panfletista e panfletário.
Testei o estilo num café, com um garçom
baiano. "O mancebo poderia angariar-me pequena efusão escaldante de
rubiácea?". E, sem dar atenção ao
espanto do rapaz, acrescentei: "mas sem desoxirribose, por obséquio".
Depois expliquei-lhe que tudo aquilo
significava apenas um cafezinho sem açúcar. O garçom, que freqüentemente era
xingado de ignorante por um advogado, quando viu seu algoz chegar, perguntou:
“vai uma efusão de rubiácea sem desoxirribose?”. “O mais difícil foi a desoxirribose”, me
disse alguns dias depois.
A busca da ornamentação forçada leva a
emperiquitar o estilo. Na década de 1960, provavelmente depois de 1964, o
Brasil foi infestado por uma praga lingüística, logo acrescida ao famoso rol
das dez que afligiram o povo egípcio ao tempo de Moisés. Técnicos e
burocratas pavoneavam-se na imprensa, fazendo previsões e análises em linguagem
que os jornalistas logo tacharam de economês. Tal jargão tornava
incompreensíveis, até mesmo para seus autores,
os comentários sobre a economia, ditos ou escritos.
Uma coisa é enfeitar o estilo, buscar a
beleza e não apenas a objetividade. Outra, bem diferente, é emperiquitar o
texto, o que denota deselegância semelhante à roupa incompatível com a ocasião.
A clássica pergunta “com que roupa eu vou?” bem que poderia ser aplicada por
analogia às variações da escrita. Perguntado o que achava da linguagem de Jânio
Quadros, um taxista saiu-se com esta: “a fala dele é como salsicha, ninguém
sabe o que tem dentro”.
É possível rastrear, na moda e na
linguagem, o nascimento da arte de emperiquitar-se. É metáfora que fez insólito
caminho em nossa língua. Periquito é palavra de origem espanhola. Veio de perico, diminutivo de Pero, Pedro. A
tradução literal de periquito, em espanhol, seria Pedrito. Em português,
Pedrinho. Suas penas foram utilizadas em leques e serviram também para
ornamentar os penteados. Assim, emperiquitar-se veio a designar o modo, em
geral extravagante, com que certas mulheres arrumavam os cabelos na península
ibérica, incrustando penas desse pássaro nos arranjos caseiros para
enfeitar-se. Posteriormente, as penas foram utilizadas também em pulseiras, gargantilhas,
brincos etc. E emperiquitar-se virou sinônimo de se arrumar para festas, como
as de Natal e Ano Novo, destacando-se pelo exagero.
Entre os que mais emperiquitam o estilo
estão as imobiliárias e os condomínios. Seus redatores devem seguir o famoso
dito: por que o simples, se o complicado também serve?
* O escritor Deonísio da Silva é
Doutor em Letras pela USP e tem trinta livros publicados, entre romances,
contos e ensaios, entre os quais os romances Os Guerreiros do Campo, Avante,
soldados: para trás, e De onde vêm as palavras, todos publicados pela Girafa.
Site: www.deonisio.com.br
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