domingo, 22 de março de 2015

Suposta realidade



* Por Pedro J. Bondaczuk


A visão que nós, jornalistas, acostumados a lidar com fatos de toda natureza, cada qual mais escabroso do que o outro, temos do mundo é, de fato, a real ou se trata de um conjunto de abstrações que criamos em nossa mente? Há alguém capaz de apreender a realidade em toda a sua dimensão? Essas perguntas podem parecer absurdas, mas absurdos somos nós e tudo o que nos rodeia. Ademais, não há quem conheça, de ter visto e convivido, todas as partes do Planeta, por maior viajante que seja e por mais experiência que haja adquirido.

Há dificuldades temporais e espaciais. Para conhecer o mundo, apenas no aspecto físico, o geográfico, com todas as montanhas, rios, lagos, ilhas, oceanos e suas complexidades, o indivíduo teria que ser mais forte do que é, mais resistente e ter maior sobrevida do que tem. Quanto ao lado humano, as barreiras são ainda mais intransponíveis. Vão desde as lingüísticas, às ideológicas e religiosas. Desde as pessoais, às étnicas.

Ninguém, portanto, conhece a realidade e talvez nem mesmo parte dela. Não existe quem tenha estado em todos os lugares, vivido com todos os povos, aprendido todos costumes, entendido todas as línguas, assimilado todas as culturas e compreendido a multiplicidade de idéias que fervilham por toda a parte. Falta-nos mobilidade, capacidade física, tempo e resistência. Falamos, por exemplo, de reis, heróis e tiranos do passado sem nunca tê-los visto, e nem poderíamos, pois nem mesmo éramos nascidos.

No entanto, argumentamos sobre eles com propriedade, como se fossem nossos contemporâneos e, mais, nossos íntimos. Claro que são frutos não apenas da nossa imaginação, mas da dos que deixaram registrados nos compêndios de história seus supostos feitos, heroísmos e patifarias. Os historiadores igualmente não conheceram seus personagens ou seus cenários. Ou se foram contemporâneos deles, com certeza, deixaram-se levar pela subjetividade, para traçar perfis positivos ou negativos.

A mesma coisa ocorre em relação a personalidades atuais. Nós, jornalistas, especialmente se lidamos com opinião, falamos, escrevemos e debatemos sobre artistas, esportistas, políticos e intelectuais com incrível familiaridade e desembaraço, mesmo sem conhecê-los sequer de vista. Muitas vezes, por havermos lido meia dúzia de livros, ou assistido a algumas peças de teatro da moda, ou apreciado alguma tela de um pintor do passado ou do presente, ou alguma escultura, ou ouvido alguma magistral composição musical, nos sentimos autênticos "sabe tudo".

No entanto, nossa ignorância, até sobre este ínfimo Planeta, é maior do que as próprias dimensões dele, que em termos cósmicos são irrisórias. Quem é capaz de citar pelo menos o nome (não se exige menção de trechos ou de enredos) de pelo menos um escritor do Cazaquistão? Ou do Burundi? Ou da Bósnia, tão na moda? Ou da Chechênia, que freqüentou por tanto tempo as manchetes?

No entanto, os cazaques, como outros povos, têm, certamente, uma rica literatura. O mesmo vale para os burundineses, bósnios, chechenos, etc. Contam com poetas de grande poder expressivo e muita imaginação, além do domínio do seu idioma. E nós? Quantos nos conhecem, sabem que existimos, ouviram falar da nossa trajetória intelectual, são capazes de citar alguma obra nossa, além dos limites paroquiais da nossa própria cidade, se tanto? Ninguém sequer atina da nossa existência. Somos um número a mais nas estatísticas, arredondáveis para menos sem que sequer se note. Mas às vezes nos sentimos senhores do Universo.

Isto que definimos como realidade não passa de rótulo. É apenas a nossa, particular, restrita e limitada. Criamos em nossa imaginação todo um cenário, interpretando nosso enredo nesse palco restrito, que para nós é universal, da forma como fomos condicionados. Somos produtos do que nossos sentidos apreendem e da nossa formação, ditada pelo meio em que vivemos.

Ou seja, não passamos de animais amestrados para realizar determinadas tarefas, mesmo contando com esse instrumento poderoso que é o cérebro, que é o raciocínio, que é a inteligência. Jorge Luís Borges observa a esse propósito: "Nós sonhamos o mundo. Temo-lo sonhado resistente, misterioso, visível, ubiqüo no espaço e firme no tempo; mas temos consentido em sua arquitetura tênues e eternos interstícios do sem-razão para saber que é falso".

Ou seja, vez ou outra, temos lampejos de lucidez, posto que breves, para contestar nossos sentidos, duvidar da imaginação e questionar a soma de informações que nos passaram. Mais vale o conhecimento completo sobre um grão de areia do que a mera suposição sobre o Universo. Tudo é questão de enquadramento.

Não podemos deixar de concordar com John Kord Lagemann quando constata: "O mundo é grande demais para ser visto de uma só vez. Para encontrarmos nele sentido e beleza temos de observar pequenas partes dele separadamente, excluindo o resto, exatamente como faz o fotógrafo quando olha através de seu visor. Em suma, temos de enquadrá-lo". Que grandes sonhadores que somos! Ou que grandes presunçosos!


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 



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