sexta-feira, 6 de março de 2015

Não deixem morrer Batutas


* Por Urariano Mota


Uma rara notícia dos jornais nos dias de carnaval, que somente pude ler depois de muita pesquisa, nos disse: “Um dos pontos altos do encontro dos Blocos de Pau e Corda aconteceu no fim dos desfiles. O bloco Batutas de São José subiu ao palco apenas com instrumentos de corda, pois a orquestra que tocaria com o grupo não apareceu. Visivelmente prejudicada, a apresentação começou com as intérpretes fazendo força para cantar praticamente à capela o hino da agremiação.

Após a primeira canção, uma das integrantes desabafou. ‘Deram calote no Batutas!’ Quando já se preparavam para entoar a segunda música, que ironicamente se chama ‘Não deixe Batutas Morrer’, a orquestra do bloco Eu Quero Mais, que aguardava sua vez para subir ao palco, socorreu a agremiação emprestando os músicos até o fim do desfile. O público aplaudiu efusivamente a apresentação conjunta. O encontro acabou com o desfile dos Blocos Pierrot de São José e Flabelo Encantado.”

Mas essa notícia, uma nota burocrática, não diz tudo. O mal dos repórteres é não conhecerem a história do que falam, por um lado. Por outro, é se porem à parte, digo melhor, acima do que devem noticiar. E por último e por fim, andarem por tesouros de humanidade como se passeassem por entre carrocinhas de hot dog.  Na notícia, já errando o nome do hino, o repórter quis falar sobre a pequena tragédia de Batutas de São José.

Mas quem é Batutas? No Portal PE A-Z se informa:

“Um dos mais famosos blocos carnavalescos do Recife, fundado a 05/06/1932, no bairro de São José. Surgiu de uma dissidência do antigo Bloco Batutas da Boa Vista, hoje não mais existente. Por várias décadas, manteve sua sede no bairro que lhe deu nome. Atualmente, tem sede própria no bairro de Afogados”.

Mas isso é pouco. O coral de Batutas de São José esteve presente em todas as Evocações de Nelson Ferreira, com o seu canto mais lindo e inspirado, cheio do sotaque histórico do Recife, como nos versos da Evocação número 1, em que canta: “Fi-líntu, Pêdru Saugado…”, em lugar de Fê-lin-tô da adulteração mais recente. Batutas de São José está presente em quase todas as canções que evocam a excelência do carnaval do Recife. A começar pelo seu maior poeta e poeta maior, o compositor João Santiago:

“Eu quero entrar na folia, meu bem
Você sabe lá o que é isso?
Batutas de São José, isso é parece que tem feitiço
Batutas tem atração que,
ninguém pode resistir
Um  frevo desses bem faz,
demais a gente se distinguir”

Mas que diferença para o Batutas neste 2015. Na segunda-feira de carnaval, eu acompanhei a sua marcha de poucos integrantes, e me constrangi, e muito, ao ver os olhos de estranheza que se dirigiam a mim, por acompanhar um bloco tão simples, de algumas pessoas com fantasia, com alguns velhinhos de violão ao lado. Mas eu estava com o Batutas de São José, eu me dizia, e apesar de constrangido, caminhava com esse orgulho: “estou com Batutas”. Sabem lá o qué isso?  Então saímos da Rua da Moeda, cruzamos em silêncio a Avenida Rio Branco, pegamos a Rua da Guia, até o Cais da Alfândega, quando desisti, desorientado, de acompanhar o mau presságio do que iria acontecer. Na hora, me pareceu acompanhar uma procissão em segredo, ou marcha fúnebre, num acompanhamento de enterro. Mas o Morada da Paz seria o Marco Zero. O grande palco do carnaval.

Agora, a nota mais deprimente. Batutas de São José me fez chorar, de tristeza e raiva, pelo estado em que se encontra e se exibiu para todos. Batutas  subiu no palco apenas com instrumentos de corda, sem instrumentos de sopro.  As cantoras, sufocadas pelo som atrás, e pela ausência de músicos do bloco, cantavam, sozinhas, “parará-ta-tá”, de boca.

A gente sabe que no desconcerto geral do mundo, os valores de cultura, de  humanidade, não têm mesmo qualquer ou nenhum valor. Se valessem nada, seriam um valor. Mas não têm expressão nem guarida os valores da memória mais querida de um povo. Quanto vale um resistente suburbano que pula no frevo como pulavam os seus avós? Quanto vale uma cantora envelhecida que entoa canções que ninguém escuta mais? Quanto vale o bloco Batutas de São José?

João Santiago cantava do amigo e compositor Álvaro Alvim:

“Não deixem morrer Batutas
Não deixem Batutas morrer
Batutas tem um passado de lutas
Viva Batutas, Batutas vai vencer!
Que lindo bloco
Que lindo é
Nosso Batutas de São José
Tem tradição, tem glória
Tem história pra valer
Não deixem Batutas morrer”

Penso que se Baudelaire fosse vivo, certamente gritaria: “Deixem Batutas morrer”. Porque isso deveria ser mais piedoso e humano que assistir ao descaimento em vida. Sinto que parece existir nos bens coletivos o mesmo mal que assalta a nós mesmos. Antes do falecimento, há uma decadência em vida, que assalta os músculos até embotar o mais caro e querido que há em muitos de nós: a revolta, a indignação.

Naquele palco do Marco Zero, Batutas de São José cantou desentoado, em papel deprimente, toda a sua glória que não existe mais. Como diria Baudelaire, deixem morrer Batutas. Seria preferível ao triste espetáculo de um bloco iluminado em toda a sua miséria: sem músicos, sem afinação, a cantar sem ironia, sem se dar conta do absurdo “não deixem morrer Batutas, não deixem Batutas morrer…”.

Mas no G1 a notícia foi:

“Um encontro de blocos de pau e corda deu largada à programação desta segunda-feira (16) do maior pólo de animação do carnaval do Recife, o Marco Zero. Ao todo, 15 agremiações levaram cores e saudosismo ao palco, empolgando pernambucanos e turistas. Os tradicionais blocos da Saudade, Batutas de São José e Eu Quero Mais foram alguns dos mais aplaudidos”.

Onde é que estavam mesmo os olhos dos repórteres? Por onde andavam distantes os seus corações? No poema em prosa “Espanquemos os pobres”, Baudelaire nos fala que depois do poeta espancar um mendigo, o miserável reagiu. E assim falou o poeta: “o homem decrépito investiu contra mim, machucou-me os dois olhos, quebrou-me quatro dentes, e com o mesmo galho de árvore me bateu forte. Com a minha enérgica medicação do espancamento eu lhe restituíra o orgulho e a vida”.

Ah, se pudéssemos com um vigoroso espancamento restituir o orgulho e a vida de Batutas de São José. Ah, se pudéssemos vencer o mar imenso de indiferença pelo estado de miséria em que se encontra. Por isso, cá do meu canto, eu que não sei cantar, chego a desejar que deixem, sim, morrer o Batutas. Deixem o Batutas morrer.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Desde moça repito o mantra: antes a pobreza do que a decadência. Boa escolha morrer antes da decrepitude. E outra: a surra devolver orgulho e vida ao bloco.

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