domingo, 15 de março de 2015

Ato de coragem


 *Por Pedro J. Bondaczuk


O escritor Fortunato Pasqualine afirmou, com muita propriedade, se não me falha a memória em um artigo de jornal (mas não me recordo qual deles), que "a verdadeira vida é um ato dialogal, é uma comunhão. É ser e expressar-se juntos para sempre". Esse "diálogo", destaque-se, nem precisa ser oral, cara a cara, "vis-a-vis", como diriam os franceses. Não é necessário sequer que seja uma "conversa", no sentido em que interpretamos usualmente esse exercício de comunicação interpessoal.

Basta que conheçamos a obra, a vida e o pensamento de determinada pessoa, com a qual comunguemos e nos identifiquemos, seja por qual meio for, e o "milagre" já acontece. Sua experiência, caso nos atraia e impressione, incorpora-se, sem que mesmo venhamos a nos dar conta, definitivamente, à nossa. Torna-se nosso patrimônio pessoal. Influencia-nos e muitas vezes até determina os rumos que iremos tomar na vida, quer os pessoais, quer os profissionais ou, quem sabe, os literários, (se tivermos talento e sorte para isso), não importa.

Foi o que aconteceu, por exemplo, comigo, em relação ao jornalista e escritor piracicabano Sud Menucci, nascido em 1892 (portanto, muito distante de pertencer à minha geração) e que morreu na cidade de São Paulo em 1948, depois de uma carreira das mais limpas, honestas, vitoriosas e produtivas em nossa imprensa diária.

A primeira vez que ouvi alguém falar dessa personalidade foi em 1949, quando do transcurso do primeiro aniversário da sua morte. Lembro-me que se tratou de um comentário, bastante trivial, feito pelo meu pai, leitor compulsivo de jornais, que havia lido muitos textos desse notável redator, do qual se tornara profundo admirador, a propósito das solenidades levadas a efeito na Capital paulista, alusivas ao seu falecimento. Ele falou qualquer coisa elogiosa a respeito da justiça que então se fazia com esse jornalista, ressaltando, à guisa de comentário, a curta memória do brasileiro em relação às pessoas que não merecem ser esquecidas, pelo exemplo que dão e por suas grandes realizações, mas que quase sempre o são.

Não sei porque, esse nome se impregnou profundamente na minha memória. Provavelmente, por ser bastante incomum: Sud Menucci! Nunca antes, e nunca depois, soube que mais alguém se chamasse dessa forma. Tem sonoridade e até uma certa poesia. Recende à Itália. É italianíssimo, sem dúvida.  O que mais, afinal, senão isso, poderia impressionar a criança de seis anos de idade que eu era nessa ocasião? Claro que nunca havia lido texto seu até então, embora meu pai o lesse e às vezes tecesse comentários favoráveis.     

O tempo passou, a infância perdeu-se em algum lugar ignorado do tempo, foi embora, qual nuvem de fumaça, rapidamente, sem que sequer me desse conta, e não pensei mais no caso. Nem no jornalista, e muito menos nas circunstâncias em que ouvira falar a seu respeito. Em 1961, já adolescente, cursando o colegial, preparando-me para enfrentar o Vestibular de Medicina, o grande sonho de minha vida, um belo dia passei por determinada rua, procurando o endereço de um amigo, com o qual combinara de estudar Física para uma prova, quando, olhando para a placa, lá estava o nome que tanto me havia impressionado na infância: Sud Menucci! Acendeu-se uma luz em meu cérebro.

Jovem, sumamente curioso, resolvi pesquisar de quem se tratava. Fui à Biblioteca Municipal de São Paulo e logo descobri que o referido jornalista havia trabalhado no "O Estado de São Paulo", entre 1925 e 1931, tendo sido redator e crítico literário desse tradicional jornal. Não me contentei com essas poucas e esparsas referências. Resolvi (nem sei por que, mas creio que o motivo foi mais do que mera curiosidade), ir mais a fundo em minhas pesquisas. Li vários dos seus textos e achei-os profundos, elegantes, atrativos e altamente elucidativos.

Como na época não havia o recurso do xerox, copiei muitas das suas crônicas e avaliações de livros. Descobri que ele havia fundado a revista "Arlequim" e saí à cata dessa publicação, com sucesso. Posteriormente, descobri seu primeiro livro, "Alma Contemporânea", datado de 1918, em um sebo de São Paulo e resolvi adquiri-lo. Não tardou para que Sud Menucci deixasse de ser para mim apenas um nome, mencionado de passagem por meu pai, ou a mera denominação de uma rua da Capital (depois fiquei sabendo que há uma cidade do interior paulista com esse nome).     

O tempo passou, ingressei no curso de Medicina, mas por falta de recursos financeiros, fui forçado a abandoná-lo no segundo ano. Decepção! Frustração! Amargura! E agora? Que profissão seguiria? Afinal, precisaria trabalhar para garantir meu sustento se quisesse, como queria, me casar e constituir família.

Hoje não tenho dúvidas de que o fascínio por Sud Menucci, que surgiu do nada, por acaso, influenciou minha decisão de abraçar o jornalismo, do qual estou aposentado, mas exercendo ativamente. Afinal, uma vez jornalista, sempre jornalista! Secretamente, bem no fundo da minha alma, acalento uma pretensão (um tanto maluca, é verdade, meio infantil, talvez megalomaníaca e sumamente improvável). A de que, um dia, o nome "Bondaczuk" desperte a  mesma curiosidade em alguma criança que Sud Menucci despertou em mim, e determine também a sua trajetória de vida. Ilusão? Quem sabe?!! Afinal, como garante o escritor David Mortensen, "comunicar-se plenamente com outro ser humano, uma vez que isto propicia o risco de causar sua própria mudança, é desempenhar o talvez mais corajoso de todos os atos humanos". E essa coragem, essa permanente e exaustiva comunicação com os semelhantes, tornou-se, em minha vida, muito mais do que profissão: é, hoje, ato tão trivial (mas vital), como comer, beber ou respirar...

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 

Um comentário:

  1. Comunica bem e atrai a cada dia mais leitores, tenho certeza, embora silenciosos.

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