Na prisão
* Por
Marco Albertim
O sol no Cariri purga o
penitente de suas culpas. Adolfo Boiares não tinha culpas, mas observou com
cismas purgativas o menino trajando batina de padre; tão escura a seda viscosa,
misturando-se à cor terrosa do rosto, aos pés nus no chão de terra batida da
praça com meia dúzia de bancos.
Era conduzido pela mãe,
cuja palidez, inda que doentia, tinha traços de resignação por nunca descrer
nas chances de melhora graças aos milagres de padre Cícero. O sol tinia na
cabeça dos ralos transeuntes. Nenhuma queixa, nem mesmo dos troncos gretados de
estrias das algarobeiras no quadrilátero acanhado da praça
Não deu tempo Adolfo
Boiares presumir-se no juízo sobre a mãe e o filho penitentes. Antes de
ajuizá-los incapazes de segurar uma carabina para assegurar a posse de um
punhado de terras para o plantio, foi agarrado por três homens. Negou sem
resistência, ser Adolfo Boiares. Quando ia ser solto, apareceu um outro, por
certo o chefe.
- Esperem.
Boiares foi agarrado
outra vez. O quarto homem tirou do bolso um retrato. Pôs a mão no rosto de
Boiares, cobrindo o seu bigode.
- É ele mesmo.
Ponham-no na camionete!
Há dois anos, Adolfo
Boiares se pusera à frente de uma marcha de estudantes, para resistir à
cassação de quarenta alunos do curso de medicina da Universidade Federal de
Pernambuco. A adesão à resistência se dera sem cálculos de perigos, de riscos.
Usava uma camisa xadrez, em tons marrons e pretos.
Agora, preso pelos
quatro homens, negando a identidade real, viu-se pisoteado no chão de borracha
dura da camionete. A camisa, que resistira sem desbote ou manchas à
reverberação do calor, do sol, foi forçoso enxergar que havia pouca diferença
entre o algodão roto e o piso de borracha da camionete, com o bodum dos pés
daqueles homens. Pés com solados marcados pela escolha de pisões cegos, duros.
- Tire a roupa! -
ordenou o mesmo homem que o identificara pelo retrato.
Como tirar a roupa!? -
pensou Boiares. Tirar a roupa seria o primeiro indício de capitulação.
Àquela altura, o preso
tinha o rosto encapuzado.
- Confesse que você é
Adolfo Boiares!
O silêncio foi seguido
pelo bofetão no rosto. Os pontapés vieram em seguida. Logo viu-se sem roupas,
pendurado no pau de arara. Os choques elétricos, nos testículos, além da dor,
percorriam todo o corpo, infundindo a convicção de que toda a bolsa dos
escrotos convertera-se num tição fumacento. Não abriu a boca para gritar. Da
última vez que gritara, fizera-se ouvir rouco, cavernoso, do modo como previra
o fim da ditadura. Mas berrara contra as cassações dos estudantes. A rouquidão
da voz, inda que rompendo as cordas da garganta, davam conta da insanidade dos
milicos que queriam pôr fim a seu fôlego. Não gritou. A boca ficou uma pasta de
sangue, sem se mover por causa dos cortes dos próprios dentes jungidos pelos
socos.
Os polícias encontraram
no bolso de Adolfo Boiares, uma nota fiscal com seu endereço. Numa cidade
próxima a Juazeiro, Jati, Jaciara Boiares, sua mulher, foi presa. Conduzida na
mesma camionete que levara o marido.
- Cheire o piso que seu
marido pisou - disse o polícia com os pés no rosto dela.
Na véspera, os dois
tinham combinado que, se presos fossem, teriam os ossos triturados mas não se
identificariam como marido e mulher. Trazidos para o Recife, submetidos a novas
torturas, Boiares reconheceu os gritos de Jaciara sob os choques.
Tiraram-no da cela, viu
Jaciara Boiares sentada com os mamilos e os pés presos aos fios elétricos.
- Você é ou não é
Adolfo Boiares? - insistiram.
A estatura pequena da
mulher, com os cabelos em desalinho cobrindo seu rosto redondo; tudo nela,
sobretudo o nariz pequeno, ressonava a um cheiro acerbo de quem se tornara
refém de répteis que se refestelam de babugem. Dar as costas à pequena Jaciara
Boiares, tão ou mais miúda do que quando a pusera no regaço para enxergar no
sonho carregado de promessas, a revolução que nunca traíram...?
- Sim, eu sou Adolfo
Boiares.
*Jornalista e escritor. Trabalhou
no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos
para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional
de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho
Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica
do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um
romance.
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