sábado, 27 de dezembro de 2014

O pixoxó


* Por Sílvio Lancellotti



Moravam num sobradinho apertado, os pais, os três filhos e uma tia-avó solteirona e afável, cheia de prendas. Pregava botões, costurava os buracos das meias, ajudava nos estudos e nos trabalhos manuais da escola, fazia bolos e pãezinhos-de-minuto sensacionais – e, principalmente, criava avezinhas.

Dispunha de uma dúzia de gaiolas com pintassilgos, canários, cardeais, dois papagaios com quem costumava conversar – e um fogoso pixoxó, de canto sensacional. Diariamente, pela manhã, a tia-avó retirava as gaiolas de uma cobertura bem protegida em que os seus diletos dormitavam, e as levava à melhor parede do quintal, aquela mais enriquecida pelo sol. Delicadamente, acomodava as gaiolas nos seus pregos respectivos, trocava as folhas de jornal que recebiam as sujeiras dos bichinhos, repunha a água fresca em cada um dos bebedouros, examinava o nível da comida, alpiste, sementinhas de girassol, folhas de alface, pedaços de frutas. O mais velho dos sobrinhos-netos, com quem dividia um quartinho de beliche, habitualmente visitava um bosque de bambus das vizinhanças – a tia-avó lhe garantia que o seu pixoxó idolatrava os brotinhos das taquaras, que não sobreviveria sem o seu alimento basilar.

Certa data, a senhora, já na casa dos setenta de idade, se distraiu e se esqueceu de fechar a portinhola da casinha do pixoxó. E o preferido entre os seus diletos escapuliu. Encarapitado no último degrau da escada que conduzia à edícula, o mais velho lia um volume de História da América quando escutou os gritos da tia-avó. Desceu a escada, desabaladamente, e intuiu o drama.

Obviamente desorientado, o pixoxó não sabia como proceder. Ficou lá mesmo, no quintal, a saltitar de canto a canto – até que o rapazote, com uma camiseta, tentou capturá-lo. Fracassou. Mais assustado ainda, o pixoxó subiu ao céu e desapareceu no azul. Por uma semana a senhora chorou e chorou, inconformada em não desfrutar mais o canto sensacional do seu preferido.

Enfim, bateu no rapazote uma idéia magistral. Numa loja de artigos de caça-e-pesca, comprou uma redinha de pegar borboletas. Daí, antes mesmo do nascer do sol, na manhã seguinte, enfurnou-se no bosque de bambus. Esperou e esperou e esperou. Subitamente, então, primeiro tímido, depois fulgurante, o canto sensacional desandou a envolvê-lo. Em instantes vislumbrou o pixoxó, a um metro de distância, a mordiscar brotinhos de taquaras. Nem precisou mirar o alvo. Mansamente, desceu a redinha sobre o suave preferido da tia-avó.

Naquela tarde, mereceu todos os bolos e pãezinhos que devorou.

* Diplomou-se em Arquitetura. Trabalhou na revista “Veja” de 1967 até 1976, onde se tornou editor de “Artes & Espetáculos”. Passou por “Vogue”, agências de publicidade, foi redator-chefe de “Istoé”, colunista da “Folha” e do “Estadão”, fez programas de gastronomia em várias emissoras de TV, virou comentarista de esportes da Band, Manchete e Record, até se fixar, em 2003, na ESPN. Trabalha, além da ESPN, na Reuters, na “Flash”, no portal Ig e na “Viva São Paulo” e é sócio da filha e do genro na Lancellotti Pizza Delivery – site de Internet www.lancellotti.com.br.




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