Coito e morte*
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Por Marco Albertim
Na noite dos Reis,
Maria Dulce saiu com a irmã para visitar os presépios. Saiu com a recomendação
da mãe, de que trouxesse a descrição precisa de cada lapinha. Na rua do Curtume, um reisado se anunciou
ruidoso; era um reisado pobre, e as roupas conferiam pompa aos atores. O rei,
com o culote até os joelhos, foi atraído pelo cetim lustroso do vestido da moça
recém-chegada. O negro a conhecera no cabaré de Joaquina. Não a chamara para o
quarto porque ela estava em companhia de moço endinheirado. Agora, com franjas
no culote, blusa comprida de cetim, coroa e cetro, quis homenageá-la.
Entregou-lhe o cetro. Puxou-a para o meio. Ela riu, desinteressada, grata. O
Mateus fez um volteio entre os dois.
O cetim de Maria Dulce
combinou com a função. Juntaram-se na homenagem o mestre, o contramestre, o
Mateus e a Catirina. Os meninos, segurando candeias a querosene, fizeram a
reverência. O mestre, com um apito, ordenou que seguissem para a visitação aos
presépios.
Entraram em casas,
recolheram dinheiro. Na última, com Maria Dulce segurando o cetro, deu-se na
rua da Baixinha. O mestre apitou. O brilho convidou-os. Na sala, o rei e o
cortejo atiraram os lenços nos ombros dos donos. O dinheiro veio dentro.
O amante de Maria
Dulce surgiu do corredor. Atrás dele, a esposa, uma velha que já parira muito.
Reconheceu Maria Dulce; não estava em sua casa, fora convidada para a
cerimônia. Sentiu-se mal. Soprou no ouvido da dona da casa, a inconveniência de
acolher gente de conduta sem boa-fé. O mestre, avisado pelo dono da casa,
retirou-se com o cortejo.
O rei deu-se conta do
desarranjo de Maria Dulce. Ordenou que começassem a dança da Alma, do Diabo e
de Miguel. Fez-se a roda. O povo em redor. Maria Dulce foi coberta com um
lençol branco, deram-lhe um rosário, instruíram-na a gemer; seria a Alma. O
Diabo, de vermelho, com rabo e garras afiadas, persegue-a, puxa-a pelo braço;
queria-a refém, levá-la às profundas.
Da janela da casa, a
mulher do amante de Maria Dulce assistia, aprovando a escolha da meretriz como
alma a pagar uma pena.
São Miguel, com asas
brancas e uma espada na mão, interpõe-se. Trava-se a luta entre ele e o Diabo.
O Diabo é vencido. Há um estouro de pólvora no meio da rua. O Diabo some de
cena. Há alívio entre o povo.
A esposa do amante de
Maria Dulce some no corredor da casa.
Maria Dulce devolve a
roupa à moça que faria a função, e agradece.
Em casa, contou à mãe
sobre o brilho de cada presépio. Fez do auto do reisado um conto de desfeita. A
velha conhecera o negro de outras aparições como rei. Elogiou-o. Disse que a
ele estava reservada a função de livrar a filha da injúria.
Maria Dulce e a irmã
comeram goiabada antes de se deitarem, comeram sem medir os bocados numa das
mesas dos fundos da casa.
- E agora, Dulce, o
que você vai dizer ao homem? - a irmã, que nunca fora cozida por homens, quis
saber.
- Nada. Ele viu tudo.
- Mas você entrou na casa da amiga da mulher dele...
- Entrei como rainha,
tinha todo o direito.
- E não foi para o
inferno...
- Ninguém pode me
mandar para o inferno. Porque todos nós já estamos inferno. Até a velha que
queria me ver queimando na rua.
Na hospedaria...
Com o amante na cama,
convenceu-o de que tinha a porção divinatória para dar-lhe o viço de macho. Ele
sentira fastio, e agora nojo pela mulher que
parira seus filhos. Provera Maria Dulce de doces, mas se deixara
subjugar pela esposa. Agora tinha a desforra na cama.
- Eu lhe dou todo o
doce do mundo - rendeu-se.
- Eu só queria doce
quando me fazia mal nos intestinos - confessou
ela.
- Vou lhe dar uma
fábrica de doces para você não esquecer que foi com uma barra de doce que
começou sua vida.
- Não precisa. Uma
fábrica de doces não vai adoçar minha vida.
Com trinta e três
anos, já tendo comido bacalhau nos dois
últimos natais, sentiu-se amputada quando Fabrício, o amante, prostrou-se no
chão depois de coitá-la. O homem suara. Não teve tempo de gritar o gozo, caiu
fora da cama. Ela chamou-o três vezes., segurou-o no pulso. Tinha o corpo
quente, ele, e os olhos revirados.
*Do conto, Deus há de
prover
**Jornalista
e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de
Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi
ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção
Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A
convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de
Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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