Democratização da mídia manda lembranças
* Por
Paulo Moreira Leite
Imagine você que na
última segunda-feira fui ao tradicional Club Homs, na avenida Paulista, como um
dos homenageados na entrega do Premio dos 100 Jornalistas Mais Admirados dos
país. Encontrei amigos, revi colegas sumidos. Subi ao palco, agradeci o prêmio
e os votos que recebi e fui embora.
Num mundo cada vez mais
atomizado, iniciativas desse tipo, realizada pelo site Comunique-se, merecem
aplauso. Reforçam o convívio entre as pessoas, ajudam a manter laços
esgarçados, reforçam a solidariedade. Lembrando que cientistas políticos
sustentam que até corais de vizinhos ajudam a dar raízes ao regime democrático,
pois constroem laços que atravessam uma comunidade inteira, só podemos
valorizar eventos dessa natureza.
Mas o evento de
segunda-feira ajudou a mostrar uma divisão política clara entre jornalistas,
entre os mais prestigiados do país, a respeito de um tema de urgência — a
democratização dos meios de comunicação.
Num sinal dos tempos
que vivemos, enquanto centenas de presentes estavam à mesa, permutando
nostalgias, diversos colegas que também subiram ao palco na condição de “mais
admirados,” aproveitaram o microfone para falar de supostas ameaças que
perseguem a liberdade de imprensa do país.
Nós conhecemos a matriz
desse discurso. Tenta-se desqualificar um debate necessário, apresentando toda
tentativa de mudar uma situação de monopólio — proibido pela Constituição —
como um exercício de ginástica bolivariana. Respeitando o direito de todos a
manifestar sua opinião, sempre que considerem adequado, sabemos que é um
comportamento coerente com a mobilização conservadora que marcou a derrota de
Aécio Neves em 26 de outubro, que tem incluído passeatas de protesto e até
pedidos de impeachment sob liderança de neo-ativistas, inclusive Lobão.
Mas, mesmo iniciada por
seus adversários, a discussão tem absoluta atualidade.
Um dos mais aplicados
críticos da mídia brasileira, o jornalista Luciano Martins Costa — também
premiado — aproveitou sua coluna no Observatório da Imprensa, no dia seguinte,
para fazer a discussão. Disse que os adversários da democratização da mídia “desfiaram seus temores e seu repúdio a uma
suposta ameaça à liberdade de imprensa, que estaria pairando sobre o universo
midiático. Foi quase uma manifestação de solidariedade ao credo patronal: o
Brasil estaria à beira de ver ressuscitar a censura do período militar, agora
por conta de um regime ‘bolivariano” em Brasília.” No mesmo tom, outro
premiado, Ricardo Kotscho, comentou: “Não encontro nenhuma razão objetiva,
nenhum fato novo concreto, qualquer sinal de que a liberdade de imprensa esteja
correndo perigo no Brasil.”
Não custa lembrar que
este debate só pode ser compreendido a partir de um contexto mais amplo. A
discussão sobre riscos — imaginários, em minha opinião — à liberdade de imprensa, tem origem no
lugar que os principais grupos de comunicação decidiram ocupar na vida da sociedade brasileira nos
últimos anos, em particular depois da posse de Luiz Inácio Lula da Silva no
Planalto, em 2003. Como ficou
particularmente claro na campanha presidencial, temos hoje uma nítida divisão
entre opiniões políticas que se manifesta no apoio ou na oposição às principais
políticas de Estado, do Bolsa Família à valorização do salário mínimo, cotas
para ingresso na universidade e uma política externa menos dependente dos
Estados Unidos.
Eu acho que os
jornalistas que se colocam como adversários da democratização dos meios de
comunicação, repetem o comportamento das corporações de que em 2013 usaram a
presença de médicos cubanos para combater o programa Mais Médicos — sem dar
respostas concretas a população pobre que não consegue encontrar um doutor para
cuidar de suas dores nem quando o Estado se dispõe a pagar R$ 30 000 por mês.
Estamos falando de
projetos para o país, de esquerda e direita,
ainda que, em função dos vínculos jamais apagados com o regime de 64, a
“direita” brasileira prefira não dizer seu nome e até sustentar que essas
distinções foram eliminadas em algum ponto da história humana posterior à Queda do Muro de Berlim.
Após a quarta vitória
do bloco Lula-Dilma em eleições presidenciais, feito raríssimo nas democracias
do mundo, parece difícil negar que uma parcela importante da população não se
sente representada pelas opções de mídia que estão aí. A maioria de jornais,
revistas, emissoras de r[adio e TV, não
só estão alinhadas sem pudor no apoio aos adversários, mas são capazes de
orientar a cobertura factual para sustentar suas preferências políticas, num
tratamento seletivo que é particularmente nocivo para o debate público e a
formação dos cidadãos.
Não se trata, é claro,
de um debate de interesse exclusivo de jornalistas. Estes são profissionais
que, em 99% dos casos, jamais têm o direito de usufruir da liberdade de
apresentar os fatos à sua maneira, de acordo com sua opinião. Sobrevivem como
cidadãos submetidos a uma divisão de trabalho que se tornou ainda mais rígida
depois que os meios de comunicação se tornaram parte essencial da polarização
política do país.
Não haveria nada de
mais na situação atual se ela fosse
fruto de uma disputa leal, entre ideias e instituições que tiveram a chance de
concorrer entre si e vencer com igualdade de condições. Mas não. Vivemos num
país onde impera uma política de comunicação que procura tirar vantagens tanto
da herança do regime militar como das noções de uma desregulamentação
grosseira, radical como em poucas partes do mundo — para impedir a entrada de
novos concorrentes, manter tudo como sempre esteve, e até piorar um pouco.
No plano das garantias
do cidadão, o Brasil aboliu o direito de resposta, que era a principal proteção
efetiva contra erros e abusos cometidos por jornalistas, e que foi,
ironicamente, uma das poucas garantias democráticas previstas pela carta de
1967, do regime militar.
No terreno das
emissoras de rádio e TV, que são uma concessão pública, convive-se sem remorso
com o entulho deixado pela ditadura — que perseguiu e esfacelou aliados do
antigo regime — reforçado pelos movimentos sequenciais de José Sarney para
engordar as legendas conservadoras e garantir cinco anos de seu mandato na
Assembléia Constituinte.
Em vez de procurar
limites á concentração de propriedade,
numa mercadoria que pode conduzir ao domínio da informação e da opinião, nada
se faz para cumprir uma Constituição que
condena o monopólio e o oligopólio em qualquer setor da economia, seja a venda
de sabonetes, ás redes bancárias e ás fábricas de chocolate.
Esta é a discussão de
fundo que precisa ser encarada, destravando um debate que foi sufocado em 1988
pelo Centrão que fez maioria na Assembléia Constituinte. Derrotado no debate político,
nosso conservadorismo foi vitorioso no atalho regimental: estabeleceu a exigência de que todas as
mudanças só entrariam em vigor quando
fossem regulamentadas por lei ordinária –e a partir então a bancada de amigos
trabalha tem trabalhado com empenho para impedir que isso aconteça,
consolidando interesses cada vez mais poderosos para impedir qualquer mudança.
O esforço para
encontrar raízes bolivarianas neste debate não resiste a 5 minutos de Google.
Basta ler os projetos
originais, de um quarto de século atrás, da deputada Cristina Tavares, daquele
honroso PMDB pernambucano ligado as lutas contra a ditadura de onde saiu
Eduardo Campos, e do senador Arthur da Távola, da geração tucana que honrava a
palavra social-democracia, para compreender o alcance da discussão de hoje.
Quem fala em bolivarianismo não sabe o que diz — ou sabe tão bem que procura
confundir em vez de esclarecer. Quando a Constituinte encerrou seus trabalhos,
de forma positiva em tantos capítulos, mas melancólica em outros, Hugo Chávez
era um simples coronel com ideias de esquerda, que desenvolvia uma militância
clandestina nos quartéis da Venezuela.
*
Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília. É também autor do livro
"A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington
e ocupou postos de direção na VEJA, IstoÉ e Época. Também escreveu "A
Mulher que Era o General da Casa".
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