Tire a roupa
* Por
Marco Albertim
A primeira imagem que
Adolfo Bonaires reconstituiu no cérebro embaciado, foi a da criança de pernas e
braços desnudos, deitada no catre entre dois prisioneiros. Os três, vizinhos e
abaixo da fossa sanitária, indiferentes ao fedor; principalmente a menina, cujo
rosto e cabelos deixam-se misturar com as fezes. A menina, conforme Tolstói,
seguindo a marcha penosa de presos políticos e criminosos comuns na Sibéria
Oriental.
Adolfo Bonaires fora
preso no Cariri, numa praça do Crato, enquanto sopesava os braços finos de um
menino seguro pela mãe. Segurara-o no braço solto, juntando carinho e urdidura,
imaginando-o na empunhadura de uma carabina. Por certo não teria forças para
puxar o gatilho, mas entregaria a arma ao pai de tronco musculoso, ou à mãe que
preferiria a morte a deixar que o filho fosse estropiado sob as patas de um
cavalo, como na guerra de Canudos.
Não teve tempo de pôr
fim à urdidura porque, jogado de repente, rápido, no piso de uma Veraneio,
sentiu o peso de um solado grosso ou vários em seu rosto magro. Estava gripado;
a secreção do nariz sumiu na aspereza do couro seco das solas. Não podia gritar
por socorro, sequer dizer que se constipara sorvendo o cheiro curtido da cepa
com estrias fundas das algarobeiras. Para os esbirros, seria um item a mais no
cardápio rotineiro das torturas.
Na narrativa de
Tolstói, a menina não tem nome. Adolfo Boiares não sentiu falta da minúcia. O
cérebro já se enchera de suposições. Os homens que o prenderam, sobretudo o
chefe de estatura baixa, não sabiam rir, só davam conta de que trincar os
dentes ou deixar que a bolota dos olhos se deixasse intumescer era mostrar o
orgulho do ofício.
Mas a menina, por certo
exausta, deixa-se dormir sem queixas do bodum das fezes. A atmosfera do
cativeiro é sombria, chumbosa, há o visgo visível da tuberculose. A cela de
Alfredo Bonaires é escura. Não há fezes na latrina, inda que as beiras e as
paredes internas exibam crostas de fungos, tão pretas quanto o chão terroso do
Cariri. Não tem vontade de sentar ali, sequer de urinar; se urinar, não olhará
para baixo, evitando que os olhos se promiscuam na dança visível das moléculas
apodrecidas.
Ainda está vestido,
quer se livrar das roupas porque o calor das paredes sem janela absorve a água
que resta de seu corpo magro. Tem na testa o vapor de um pano cobrindo a tampa
de uma chaleira com água fervente. Não cede à tentação de se ver livre das
fibras do brim que tem no corpo. Se o torturador ordenar que tire as roupas do
corpo, não o obedeça, ouvira de um camarada que fora preso. É o prenúncio da
desmoralização do preso, a antecâmara da confissão.
Ainda não fora
torturado; urdira-se torturado depois que o fizessem sentar na cadeira do
dragão. O rosto tinha hematomas, ronchas de socos nas orelhas; os lobos e as
hélices ardiam, toda a orelha vermelhava dos tapas. Queria ver-se livre da
ardência, tocando-a cauteloso com a ponta dos dedos; mas assim, fazia reavivar
o fogo nas laterais do rosto. Pôs cada uma das mãos em concha, para proteger as
orelhas. O que sentiu foi a concentração da dor.
Deitou-se no catre. A
menina da narrativa de Tolstói, melhor dizendo, seu espectro, soprou em seus
ouvidos o bafo doentio e curto dos pulmões ainda não crescidos. A secreção que
desce de seu nariz mistura-se sem resistência à água carregada de excrementos,
de bacilos sem cores definidas. Adolfo Boiares tem cortes na entrada das
narinas. O queimor que vem do fedor da latrina, deixa os cortes mais abertos,
em brasa. O sangue do rosto chamusca
Olhar para cima, como
fazia em casa, deitado na rede para entrever os planos de revolução, agora ele
faz o mesmo.
Dois homens abrem a
porta da cela. A madeira da porta é tão grossa que rosna raivosa quando se
deixa abrir.Deixa-se puxar pelos braços, é levado à sala de torturas; tem os
olhos quase fechados por causa dos hematomas. Distingue três homens em pé. Têm
no centro a cadeira do dragão.
- Tire a roupa! - grita
o que parece ser o chefe.
*Jornalista e escritor. Trabalhou
no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos
para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional
de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho
Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas
“Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de
contos e um romance.
Chamar torturador de monstro é enfeitar-lhes a caratonha.
ResponderExcluir