Uma crônica de Natal
* Por
Célio Simões
Já li, não sei bem
aonde, que a família é um aglomerado de pessoas que se detestam. É possível que
sim, bastando lembrar que a gente já nasce parente um do outro, enquanto
amigos, nós os elegemos pelas afinidades, pela mútua empatia e pelos mais
elementares gostos e predileções.
Tenho um alentado
número de amigos, bem menor, aliás, do que os verdadeiros e incondicionais
amigos, merecedores da minha confiança. Amizades nascem de muitas semelhanças,
mas também de diferenças.
Na escola da vida
aprendi a reconhecer um amigo pela presença silenciosa nos momentos de dor.
Amigo verdadeiro sabe se alegrar com as nossas conquistas e tornar suportável
as nossas derrotas. Amizade que cultiva a inveja perde o sentido e sufoca o
amor gratuito que fortalece a árvore da partilha.
Venho de uma numerosa
família do interior da Amazônia, no seio da qual as demonstrações de afeto se
exteriorizavam durante o ano todo e não apenas no Natal, época propícia a
internalizar sentimentos nobres de solidariedade, paz, amor e justiça. E quando
falo justiça, o faço inspirado na milenar sentença de Ulpiano, que afirmou ter
a mesma três preceitos: viver com honestidade, não lesar o próximo e dar a cada
um o que é seu.
Natal de antigamente
comovia pelo tocante ritual da missa do Galo à meia-noite (hoje antecipada para
o fim da tarde por temor de assaltos), os cânticos contagiantes, o clima de
fraternidade, os belos presépios e a saga dos Reis Magos, a quem pode ser
atribuída a iniciativa da oferta de presentes, pois assim o fizeram para
homenagear Cristo recém-nascido. Um capítulo à parte deve ser reservado ao
símbolo universal das festas natalinas – a árvore de Natal – recheada de bolas,
luzes cintilantes e multicores.
Tínhamos o costume, em
casa, de cumprir um ritual nessa época do ano. Primeiro, a troca dos cartões de
felicitação, enviados por amigos locais ou de longe, com a ajuda dos Correios,
tradição que hoje sucumbe pela praticidade dos e-mails e redes sociais. Depois
da missa do Galo na centenária Catedral de Sant’Ana, uma reunião em torno da
grande mesa da sala, ornada com flores e bordados, onde cantávamos “Noite
Feliz”, sem perder de vista as deliciosas iguarias onde se destacavam doces de
todos os tipos e o indefectível chocolate com ovo, uma delícia que as modernas
dietas baniram dos lares, sob a ameaça de aumentar o colesterol.
Tenho em mente um
Natal que me foi particularmente gratificante. Eu cursava o segundo ano
ginasial em Óbidos, tinha apenas 16 anos e me foi dada a chance de conhecer em
Santarém (onde eu nunca havia estado) a SEAS – Serviço Estudantil de
Assistência Social, uma entidade filantrópica formada pela estudantada local,
tendo como missão humanitária a arrecadação de numerário, roupas e mantimentos
para as pessoas humildes da periferia.
Naquela época remota,
enfrentei com estoicismo mais de 8 horas de barco descendo o Amazonas, ao
encontro do azul do Tapajós, cuja primeira visão me deixou sem fôlego pela
formidável beleza.
Algumas famílias
santarenas previamente selecionadas hospedaram os alunos obidenses, que
obviamente não possuíam dinheiro para pousadas ou hotéis, tendo eu ficado em
companhia do Adailton Moreira na acolhedora residência de um cidadão chamado
José Maria Matos, pai do jovem José Manoel, sem me dar conta de que era ele o
vice-prefeito do município.
E ciceroneados pelos
alunos do Dom Amando visitamos as pessoas que viviam na extrema pobreza,
levando as prebendas adrede coletadas pelos novos colegas de missão social.
Lembro bem que o
encerramento do evento foi no Santa Clara, auditório lotado, onde um artista
local chamado Laurimar Leal interpretou uma linda canção denominada
“Bernadete”, que anos depois, já morando na Pérola, vim saber ser de autoria do
grande maestro Isoca.
Achei tão inspirada a
composição que sem explicação plausível, decorei a letra e a música naquela
única exibição, que canto “mentalmente” até hoje quando bate a saudade daquela
beira de rio. Com muito orgulho, sou obidense de nascimento, belenense por
opção, porém me considero santareno por direito de conquista, pois na Terra
Querida vivi inesquecíveis dias da minha juventude.
De regresso à Cidade
Presépio, pusemos mãos à obra e fundamos a SEAS de lá, elegendo o Firmino
Chaves de Souza como seu presidente, por se tratar de um aluno de procedimento
lhano e exemplar conduta dentro e fora da escola. Trabalhamos à roda do ano
arrecadando brinquedos e vestuário usado, principalmente estes, e na quadra
natalina, apesar das férias escolares, um grupo de estudantes, sob um sol
inclemente, entregou-se à cansativa porém gratificante tarefa da distribuição
dos presentes.
Nos olhos e palavras
daquelas pessoas, além da gratidão, era perceptível o supino espanto
simplesmente porque foram lembradas, pois de outra forma passariam as festas de
fim de ano esquecidas, sem nada de seu senão o dia e a noite.
Decididamente aquele
Natal de 1963 foi diferente. Pelos recantos da ampla casa, meus pais, irmãs,
tios, avó e agregados da família se entregavam a álacre confraternização antes
dos parabéns pra você (ia esquecendo de dizer que o dia 24 é meu natalício…),
preparando caprichosamente a ceia que precedia a chegada do “bom velhinho” e eu
como que distante dali, com a imagem ainda viva daqueles seres humanos
despojados de bens materiais, de alento e de esperança que visitáramos na
antevéspera.
Gente que eu nem
imaginava que passava tantas agruras e viviam (ou sobreviviam) bem perto de
mim, numa cidade pequena.
Nos dias atuais,
quando o Natal transmudou-se num grande e lucrativo evento comercial por
engenhosos marketings que induzem furiosamente às compras, procuro lutar nos
limites da minha residência para encurtar a progressiva distância que vai
afastando essa maravilhosa festa de suas mais lídimas raízes e tradições.
Para o brinde e a
troca de presentes, ainda mantidos, reúne-se a família e os amigos achegados em
volta do bolo, das castanhas e do panetone, cujo sabor para mim nem de longe se
compara ao prosaico e gostoso chocolate com ovo.
* Obidense, é advogado
e membro da Academia Paraense de Jornalismo.
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