segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Banhos salgados e pregões

* Por Leonardo Dantas Silva

Naqueles idos de 1920, o banho de mar era recomendado para fins terapêuticos, tornando-se Olinda a praia da moda. As famílias foram deixando os banhos de rio, nos arrabaldes atravessados pelo Capibaribe, e se foram em busca dos “banhos salgados”, como eram chamados, nas praias do Carmo, dos Milagres, de São Francisco e do Farol, já servidas pelas linhas dos bondes da Pernambuco Tramways.

É de Mário Sette a descrição, in Anquinhas e Bernardas:

Os banhos de mar foram tomando o seu aspecto de benefício para a saúde e de convívio social. Embora se entrasse n’água muito cedinho, de madrugada, quando seriam mais aproveitáveis nos casos de anemia, nervoso e fraqueza das pernas. As mulheres vestiam aqueles compridos trajes de baeta, de calças até tornozelos, disfarçadas ainda pelos casacos debruados a galões de cores. Os homens também traziam calções abaixo dos joelhos, de baeta, e camisetas de mangas longas, quando não jaquetas daquele tecido. Ao longo das praias ficavam os banheiros de palhas de coqueiros, em duas e três filas, com dois compartimentos, um para homens, outro para as moças. Dentro, uns bancos rudimentares e as bacias de água-doce para lavar os pés.

Nas ruas, os pregões tomavam conta das horas mais diversas. O homem do munguzá, com as duas latas de flandre penduradas pelo galão apoiado ao ombro, cantava em ritmo de marcha marcial – 

mamãe não chore
que a guerra não vem aqui 
alemães só tomaram o sul 
do Brasi (bis) 
mamãe lá vem
o homi do munguzá (bis)
ó meu filhinho, chame ele pra comprá

O homem do cuscuz, com o seu tabuleiro de flandre equilibrado à cabeça; o miudeiro, com o seu tabuleiro deixando aparecer os pés do boi (mocotó); o padeiro, com a sua voz de baixo cantante a despertar do sono alguns retardatários – “pães fresquinhos/ pães quentinhos/ pães de dois por um tostão/ pães franceses, portugueses/ que bonzinhos que eles são…”.

E o homem da ostra, “… eu tenho a ostra chegadinha agora”; bolinha de cambará, “… eu tenho bolinha de cambará, cada pacote é um tostão”. E o vendedor de quartinhas, “… eu tenho quartinha! Quar-ti-nha!”; o vendedor de vassouras, … “Vas-sou-rei-ro ! Espanador, vasculhador, colher-de-pau, esteira d’Angola, rapa-coco e gréia!…”; “Mé novo ! Mé-novo..de…ingenho !”; o homem da macaxeira: “Macaxeira! Macaxeira rosa! Tem rosa e Bahia! Cozinha n’água fria!”; o homem da pitomba fazia a alegria da criançada: “Pi-tom-ba! Chora menino pra comprar pi-tom-ba!”; montado num cavalo, com dois caçuás, o homem da galinha anunciava: “Ga-li-nha! Galinha gorda!”; travesseiros, só de lã de barriguda: “eu tenho a lã de barriguda! Lã para travesseiro!”…

Os pregões dariam um capítulo à parte, neste Recife de Mascates, mas um deles, o do negrinho do sorvete, presente todas as noites nas ruas dos bairros da Boa Vista e São José, ainda hoje não sai do repertório de marchinhas dos mais velhos:

Vou aqui por esta rua
Para a Rua Imperial
O sorvete que aqui levo (bis)
O sorvete que aqui levo
É sorvete especial
Quem foi que viu!
Fazer sorvete assim!
As mocinhas dessa rua
Só compram sorvete a mim…

E ao retornar ao seu modesto lar, lá para as bandas dos Coelhos, já no adentrar da noite, o negrinho enchia de lirismo as ruas com as estrofes de sua marcha-regresso:

Carneiro quando se molha
Trata de sacudir a lã.
O negrinho vai-se embora
O negrinho vai-se embora
Sorvete só amanhã.
Quem foi que viu
Fazer sorvete assim.
As mocinhas desta
Só compram sorvete a mim.

Era um Recife sem história e nem literatura, como descreveu o poeta Manuel Bandeira. Onde “a vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala o gostoso português do Brasil.”

No âmbito das comunicações o Recife vira surgir, em 3 de abril de 1919, um novo jornal: Jornal do Commercio. Trazia no seu cabeçalho: “Diário da manhã, dedicado aos interesses das classes conservadoras e do Estado em geral”. Era de propriedade de João Pessôa de Queiroz, sendo assim constituído: diretor, Salomão Filgueira; redator-chefe, Odilon Nestor; redator-secretário, Manuel da Silva Lobato; redator, Francisco Pessoa de Queiroz; gerente, Otávio Jaborandi de Moraes. Tinha redação e oficina na Rua 15 de Novembro (atual do Imperador Pedro II) nº 295. Formato grande, composição em Linotipos Mergenthaler e impresso em Marioni de reação, com doze páginas, vendido ao preço de 100 réis o exemplar.”

Circulavam no Recife, em 1920, o Diario de Pernambuco (1825), Jornal do Recife, A Província, Jornal do Commercio, Diario do Estado, além dos vespertinos: Jornal Pequeno, Jornal do Recife, A Rua, A Notícia, A Noite e as revistas ilustradas, A Pilhéria e Rua Nova.

Muita coisa poderia se dizer do Recife, naquele início dos anos vinte, onde eram aconselhados aos visitantes passeios de bondes, de trens, de automóveis (…“a Timbaúba só se chega com grande dificuldade”, alertava o Guia); visitas a monumentos e igrejas seculares; as pontes a cruzar os rios, Capibaribe, Beberibe, Jiquiá; o movimento educacional, dos seus colégios e faculdades; o movimento cultural de suas associações diversas; os seus templos religiosos e uma infinidade de outros aspectos daquela cidade dos nossos avós.

Um Recife sem história e nem literatura, como queria o poeta Manuel Bandeira, …

“Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô”.

* Historiador, jornalista e escritor do Recife/PE


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