terça-feira, 1 de outubro de 2013

Bilhete

* Por Cecília Prada

Acho que desta vez me perdi de vez - mesmo. Ainda estou caminhando mas está ficando escuro e frio - os que têm notícias de mim me avisem por favor, se me virem passar. Se souberem por onde fui. os que possuem algo de mim - corpo carnal que dei aos filhos, espírito que dei aos meus escritos, pedaços de mim que se esgarçaram e perderam, voaram, tenuemente desfeitos nos por aí, me digam por favor, onde, catem fios dispersos, lantejoulas, sofrimentos - e minhas risadas, sim, por que não?

E me tragam, seus pedaços, para que eu possa, precariamente, me recuperar. Talvez, Meu vestido de pintinhas azuis, estão lembrados? - deve haver alguém, solitário e final, dele lembrado. Minha saia vermelha que eu brincava de saia cigana, me rodopiava nela, e a blusa de organza branca, de babadinhos, e o primeiro caderno de capa xadrezinha que eu amei mais que a todos meus namorados - psiu, não digam a ninguém, não digam. Me tragam, se virem fragmentos deles no pisar dos anos muitos esfrangalhados - quem, os namorados? os versos que lancei ao vento, as contas de um colar verde arrebentado?

E se alguém tem certeza, mas eu digo certeza mesmo, da razão de nosso viver -ah, que me diga logo, loguinho, por favor. Que não tenho mais tempo de ficar esperando começar o baile que não houve.

"Esperei toda a vida que me abrissem a porta / ao pé de um muro que não tinha porta " - disse Fernando Pessoa.

(Os poetas mortos sempre nos ouvem. E como respondem!).


* Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico. 

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