quarta-feira, 16 de outubro de 2013

O escasso é que tem valor

* Por Mara Narciso

A surrada expressão “jóia rara”, que é nome de novela no momento, esvaziou-se em parte, pela repetição sem fim, mas bem ilustra como correm e valem as moedas da civilização. Os metais escassos como ouro e prata, assim como o diamante e o petróleo, fazem pouco volume na crosta do nosso pequeno planeta, daí praticam o preço que costumam ter. Então, aquilo que existe em pequena quantidade em termos minerais é bem valorizado. Dizem que um dia a maior guerra será por água e não por energia. Enquanto isso...

Das grandes questões mundiais partamos para a vida miúda, as ninharias existenciais de cada um. As pessoas boas, que estão presentes no dia a dia e que servem aos outros costumam não ser devidamente reconhecidas. No caso de parentes que sempre estiveram à disposição, chegam a não ser vistos, embora “enxergáveis”. Tornam-se objetos, feito criados-mudos, acessórios indispensáveis, porém sem vida própria. Quem vai se lembrar dos sentimentos daquela velha tia, que não se casou e está ali, desde antigamente, cuidando de tudo e de todos? Há mesmo um grupo de mulheres que não viveram suas vidas, mas as vidas alheias, apenas para servir. Sem contar as que se dedicam à religião e à solidariedade em escala nacional e até universal.

Os serviçais que fazem o trabalho humilde como catadores, garis e faxineiras são invisíveis, parecem não existir, mas, caso suspendam suas atividades a sociedade vai parar. Mas no dia a dia não se dá conta disso. O porteiro e o ascensorista costumam não ser vistos e nem lembrados, nas suas rotinas massacrantes, aparentemente, de nada produzir. Deve ser duro viver sem existir. Mas um dia isso muda. E que seja para melhor.

A esposa laboriosa, que acorda cedo e põe a casa para funcionar a tempo e a contento, também é esquecida e desprezada, inclusive socialmente. A pergunta é: “mas você não faz nada?”, em tom de censura, é o que ela costuma ouvir. Os filhos e o marido não a enxergam como pessoa que tem desejos e necessidades pessoais e sofre com a falta de reconhecimento e valorização. Pensa em fazer outros vôos, mas está presa em sua gaiola social, que tem a portinhola aberta, mas fechada por ela mesma.

Tudo precisa ter a quantidade certa. A minha mãe, Dra. Milena, que era ginecologista, achava graça de as mulheres reclamarem das menstruações. Uma delas lhe disse assim: “Doutora, a minha vontade é ter uma menstruação vermelha, bem bonita, e não do jeito que é, só esse pouquinho”. Isso me fez lembrar um remédio antigo que se chamava Regulador Xavier. Na cantigazinha da propaganda no rádio dizia algo como “Número um, excesso; número dois, escassez”.

Para fazer graça, há quem deboche do outro que quer ser valorizado, ou se sente o máximo, com termos como “ele pensou que era a última Coca-cola do deserto”, ou “a última bolacha do pacote”. Ainda assim, a pessoa que se diz importante é incompreendida, e taxada de metida. Não é fácil ser verdadeiro, sem receber repreensão. Boa auto-estima é considerada defeito. Valorizamos e desejamos o que não temos ainda e quando está à mão, deveria ter o mesmo sabor imaginado. Não tem.

Quem se coloca refém do servilismo, da disponibilidade inconteste, que está “ao inteiro dispor”, e que, ao ser solicitada já se manifesta disponível, ao invés de ser considerada apta e organizada, é tida como à disposição, e por isso perde a valia. No amor também é assim. O difícil é mais desejado. O chamado “arroz de festa” e que está em todas, acaba por se desvalorizar diante dos olhos do pretendido. O que fazer para elevar o cacife e tornar-se figura rara? Há quem se enfurne no quarto e suma de circulação. Outra não atende ao telefone. Ainda outra pensa várias vezes antes de agir, perdendo a espontaneidade e autenticidade. Fazer-se de difícil dá resultado, ou leva ao reverso do pretendido? Difícil saber o que fazer diante de certos chamados. Ser inacessível é ser chata e metida, e estar disponível reduz a possibilidade de valorização. Equilibrar-se é preciso. Haverá um dia em que as pessoas terão na testa o linguajar dos computadores, “on” e “off”. Talvez assim o respeito ao próximo ocorra como deve ser, e muito não será demais.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Pleno de lucidez reflexiva este seu texto, Mara. A todos nós cabe pelo menos uma das "carapuças" enunciadas. Parabéns.

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  2. Viajando, só agora vejo seu comentário. Muito obrigada, Marcelo

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