Micaela Bastidas: Mulher rebelde
* Por
Elaine Tavares
Era 1745 na vastidão do Peru. Terra de incas, os filhos do sol. No
povoado de Tamburco, em Abancay, departamento de Apurimac, nascia Micaela
Bastidas Puyucahua, uma guria mestiça que iria marcar com sangue e coragem a
história da gente peruana. O pai, Manuel, tinha sangue espanhol, mas a mãe,
Josefa, era inca da gema. Esta mistura fez de Micaela uma linda mulher de
traços fortes e cabelos ondulados, uma “zamba” que, para as gentes de Abancay
significa alguém com características distintas a dos andinos, mestiça. Mas, ao
logo de sua vida, mostrou que –apesar do sangue espanhol - era verdadeiramente
uma mui digna filha de Tawantisuyo, a grande nação do povo dos Andes.
E foi em Tamburco que ela cresceu, um povoado rural, pequeno, pobre, mas
rota de passagem dos viajantes que circulavam pelo país em lentas mulas na
penosa jornada de carregar mantimentos e produção de um lado para o outro. Foi
correndo por aqueles pastos e observando a crescente pobreza das gentes que ela
desenvolveu seu aguçado senso de justiça que mais tarde iria se transformar em
lenda.
A história de Micaela se mescla com as grandes lutas de libertação da
América Latina quando, em 1760, ainda jovenzinha, casa-se com José Gabriel
Condorcarqui, cacique de seu povo e descendente do último Inca, Tupac Amaru,
morto em Cuzco no ano de 1572. É ele quem vai incendiar as paragens peruanas na
revolução que ficou conhecida como a “revolução de Tupac Amaru II”.
Naqueles anos do final do 700, a exploração dos trabalhadores indígenas
era uma coisa insuportável. A colônia fazia seus estragos, rapinava riquezas,
escravizava os seres. Já tinham passados quase duzentos anos desde a invasão e
os povos originários estavam começando a despertar da letargia. Rebeliões
tinham sido feitas ao longo desses anos, mas todas tinham sido esmagadas. A
mais recente, em 1760, justamente o ano do casório de Gabriel e Micaela, fora
liderada por José Santos Atahualpa, buscando restaurar o reino dos Incas. Esta
última fez os espanhóis ficarem de cabelo em pé, porque perceberam que, nas
comunidades indígenas, algo muito poderoso começava a se fortalecer: o desejo
de liberdade. Aparte isso, também os criollos (gente nascida na terra, mas com
sangue espanhol) estavam insatisfeitos com a coroa em função dos altos
impostos. Caldo perfeito para mais confusão.
Por conta destes dois elementos incendiários, Tupac Amaru acabou
liderando uma revolução vinte anos depois, em 1780. Homem letrado, já cacique
de seu povoado, o descendente do Inca já estava impregnado dos ares rebeldes
que vinham da França, dos Estados Unidos e do Haiti. Seu primeiro ato
revolucionário foi acabar com as obrajes, espécie de fábricas onde os índios
eram explorados até a morte, ganhando miseráveis salários. Seu propósito era ir
até Cuzco, destruindo todas estas formas de opressão e instaurando um governo
indígena. Não foi à toa que em poucos dias já tinha juntado mais de 10 mil
índios no seu exército. E, nessa caminhada até o “umbigo do mundo da nação do
Tawnatisuyo”, ele ia libertando todos os escravos.
Durante o pouco tempo (cinco meses) que durou a revolução de Tupac
Amaru, Micaela Bastide esteve a seu lado. Por várias vezes comandou as tropas e
não foram poucas as suas ações como chefe de governo. Seu corpo forte e esguio
era visto, manhã cedinho, a cavalgar pelos povoados, arrebanhando gente para a
guerra. Ela era quem administrava as provisões, mobilizava os destacamentos e
administrava as terras liberadas pela revolução. Era considerada a facção mais
radical do movimento. Quando Tupac Amaru vacilava no seu avançar sobre Cuzco,
era Micaela quem o impulsionava, seja pessoalmente ou através de cartas que
lhes fazia chegar amiúde. Por várias vezes se mostrou mais estrategista do que
ele como, por exemplo, quando intuiu que a união com os criollos não ia dar em
boa coisa. A história o comprovou. Esperando por um levante das gentes de
Cuzco, Tupac Amaru demorou a entrar na cidade. Isso fez com que as tropas reais
se rearticulassem e o derrotassem em março de 1781. Cuzco não foi conquistada e
tudo se perdeu. Numa de suas cartas a Gabriel, Micaela escreveria: “Chepe,
chepe, mi muy querido: bastantes advertencias te dí”. Ela nunca confiara nos
brancos e tampouco nos criollos. Sempre acreditou que entrando na cidade, venceriam.
Gabriel não lhe deu ouvidos.
Assim, vencidos, os líderes rebeldes foram aprisionados. Entre eles
estão Gabriel (Tupac Amaru), Micaela, e seu filho Hipólito. No mês de maio do
mesmo ano todos são supliciados na Praça Maior da cidade. Micaela, Gabriel e o
filho chegam arrastados por cavalos. Irão sofrer todas as torturas possíveis. O
primeiro a morrer na forca é Hipólito, diante dos pais. Mas, antes, lhe
arrancam a língua. Micaela fica impávida. Depois, vários outros rebeldes vão
sendo mortos nas mesmas condições de crueldade, muitos são parentes, amigos.
Micaela é a penúltima. Sobe no cadafalso com a mesma altivez que lhe valera a
formosura. Tem a língua arrancada e depois, como não morre em seguida, os
carrascos ainda lhe aplicam golpes no estômago e no peito. O filho mais novo,
de nove anos, assiste a tudo. Será levado depois, prisioneiro, para a Espanha.
O último a morrer é Tupac Amaru. O cacique revolucionários é amarrado a
quatro cavalos que são postos a correr em direções opostas para que o corpo do
índio seja esquartejado. Os cavaleiros esporeiam os bichos, eles arrancam e o
cacique não se parte. Por várias vezes é feito o mesmo procedimento e Tupac
Amaru não se parte. Os espanhóis desistem e desamarrando-o o esquartejam a
golpes de machado, sendo suas partes espalhadas por várias regiões do Peru.
Dizem que nessa hora sagrada, em que o corpo do inca resistiu, uma chuva grossa
caiu do céu.
Talvez seja por isso que até hoje, quando chove no Peru, as gentes
originárias se ponham a sorrir. Lembram o tempo em que Tupac Amaru incendiou de
novo a caminhada para a liberdade, junto com Micaela. Lembram que sempre é
possível enfrentar a violência, o terror, o medo. Sorriem e seguem, porque há
ainda muita estrada para caminhar. O povo de Tawantinsuyo ainda não entrou em
Cuzco. Vai entrar, e vai ser como queria Micaela. Isso ainda vamos ver!!!
*
Jornalista de Florianópolis/SC
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