sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Providencial ação do acaso

O acaso tende a determinar, sem nenhum aviso – até porque, se “avisasse, óbvio, não mereceria essa designação, ou seja, não teria o caráter de casual, de fortuito, de imprevisível – nosso sucesso ou fracasso, seja lá no que for. Tanto pode ser na conquista, ou perda, de posição de destaque em determinada atividade profissional, acadêmica ou artística. quanto no início ou fim de algum nada promissor e potencialmente complicado relacionamento amoroso, entre outras, talvez infinitas, possibilidades. Na vida literária sua influência não é menor e nem menos decisiva.

Tomo como exemplo dois casos envolvendo o mesmo escritor: Herberto de Azevedo Sales, décimo personagem desta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos, com base na antologia de contos “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963). Um deles refere-se à influência que recebeu quando ainda cursava o ginasial, em Salvador, em sua adolescência. O outro, foi a forma como seu romance de estréia, “Cascalho”, foi salvo da destruição, depois do autor ter ateado fogo na única cópia que havia feito, acreditando que os originais estivessem perdidos. Sem essas duas circunstâncias, é possível que ele jamais chegasse onde chegou, nunca conquistasse o estrelato no campo das letras e não passasse de cidadão comum, anônimo, como nós, conhecido, apenas, em um círculo restrito de parentes e de amigos.

A influência recebida foi a do Padre Cabral, que tem que ser sempre lembrado, e reverenciado, por haver influenciado vários outros promissores estudantes que viriam a se tornar, anos depois, nomes famosos no mundo das letras, como Anísio Teixeira, Flávio Neves e, principalmente, Jorge Amado. Via de regra, esses “garimpeiros de vocações”, esses professores que agem, como esse jesuíta agiu – (e não somente com as pessoas que citei, mas com vários e vários outros estudantes, menos famosos, ou que sequer atingiram a fama, mas que tiveram o prazer de terem seus talentos reconhecidos), são esquecidos com o tempo pelos beneficiados. Além de garimparem, eles também lapidam esses diamantes brutos. Reconhecimento, porém... é algo com que não contam. Infelizmente. São ossos do seu ofício (diria, do seu sacerdócio).

Padre Amaro, que lecionava no Colégio Antonio Vieira, de Salvador, vislumbrou potencial literário nas redações escolares de Herberto Sales. E embora este, na época, sequer cogitasse em se tornar escritor, uma sementinha deve ter permanecido no seu cérebro. E, no devido tempo, ela desenvolveu-se e se transformou em saudável e frondosa árvore. Poucos valorizam essa influência. Eu, porém, valorizo muito, pois contei com o apoio de mestres assim, entre os quais destaco o professor Moisés Prates.

O que aconteceu, em relação ao romance de estréia de Herberto Sales, “Cascalho”, uma obra-prima, modelo no gênero hoje e sempre, foi muito mais incrível e “miraculoso”. O então jovem “projeto de escritor” redigiu, com entusiasmo, mas com a insegurança dos que trilham determinado caminho pela primeira vez, 650 páginas de uma história densa, original, realística e profundamente humana. Decidiu enviar o romance (um calhamaço daqueles, convenhamos) para um concurso literário promovido pela “Revista do Brasil”, do Rio de Janeiro, que tinha como secretário ninguém menos que Aurélio Buarque de Holanda. Herberto fez uma única cópia (em papel carbono) do livro.

Como não fosse classificado entre os finalistas – por uma razão qualquer, provavelmente pela extensão da  obra – concluiu que havia se enganado quanto à própria vocação literária. Quanto a isso, nunca temos absoluta certeza. Herberto também não tinha. Decepcionado e talvez até envergonhado por haver se exposto daquela maneira, rasgou em quatro pedaços a cópia que tinha em seu poder, que acreditava ser a única, pois presumiu que os promotores do concurso haviam dado fim aos originais, e pôs fogo naquela papelama. “Pronto! Não pensarei mais em ser escritor”, concluiu. Porém... aí entrou a interferência do acaso.

Aurélio Buarque de Holanda, “vidrado” em tudo o que fosse referente a regionalismo, resolveu ficar com os originais de “Cascalho”. Até aí, tudo bem. Eu mesmo guardo, entre a minha volumosa papelada, alguns livros nunca publicados e esquecidos, quando não renegados, por seus autores. Com o tempo, esse material, aparentemente sem serventia, transforma-se em mera curiosidade, e olhem lá. Não raro, em certo dia, nos desfazemos dele, até para poupar espaço. Ocorre que Aurélio comentou o romance que tinha em mãos com Marques Rebelo, de quem era vizinho. Teceu entusiásticos e rasgados elogios ao volumosíssimo calhamaço, que lera e relera várias vezes e a cada leitura descobrira coisas novas e surpreendentes. Falou do estilo, das descrições, dos personagens, do ambiente, do enredo, da forma de narrar, de tudo, enfim. E, com isso, interessou o interlocutor, que quis saber quem era o autor daquele texto que entusiasmara tanto seu via de regra rigoroso e discreto amigo.

E aí... o acaso atuou de novo. E com inusitada intensidade. Ocorre que Marques Rebelo mantinha correspondência regular com Herberto Sales, não se sabe por qual motivo, que não importa. Por isso, resolveu relatar ao jovem correspondente a conversa que teve com mestre Aurélio. Em resumo, convenceu o autor que o romance era muito bom, “mexeu os pauzinhos”, encontrou editora disposta a publicá-lo, e, desta forma, a Literatura brasileira ganhou um dos seus maiores clássicos de todos os tempos. O livro emplacou, caiu como uma bomba nos meios literários, embeveceu críticos, agradou leitores, esgotou várias edições e fundamentou uma das mais brilhantes e inquestionáveis carreiras de que se tem notícia. Agora, respondam-me: foi ou não foi providencial a interferência do acaso?

Boa leitura.

O Editor.           


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