Bonecas quebradas
* Por
Gustavo do Carmo
Quando criança,
Bonerges brincava com bonecas. E com bonecos também. Os brinquedos eram todos
dele, inclusive as Barbies e as Suzys. Usava as bonecas como as mocinhas em
perigo das suas brincadeiras e os Falcons e Rambos eram, obviamente, os heróis.
Quem dava as Barbies
era a mãe, pois o pai se recusava a dar bonecas para o filho que deveria ser
macho. E Bonerges realmente era. E muito. Não tinha nenhum jeito afeminado.
Mesmo assim, não deixou de ser vítima de bullying.
Culpa do seu melhor amigo (da onça) Geraldo Igor José, que entregou a sua
diversão para os colegas de escola mais arrogantes e fortões.
Claro que ele ganhou o
apelido maldoso de Boneca. A macheza de Bonerges o ajudou a se defender das
difamações e até das agressões físicas. Não agrediu Geraldo. Ficou apenas um
ano inteiro sem falar com ele, perdoando-o apenas depois que o traidor sofreu
um acidente e ficou paralítico.
Isto acabou lhe
despertando um sentimento de caridade e compreensão incomum. Bonerges perdoou
os valentões e passou a ajudar qualquer um. Dava comida para um mendigo,
socorria um acidentado, ajudava um idoso a atravessar a rua e até tentou
trabalhar de voluntário em um abrigo de menores, mas foi impedido pelos pais.
Um dia, Bonerges emprestou
as suas Barbies para a irmã mais nova, Poliana, brincar com a coleguinha. Sem
querer, ela deixou a boneca cair na rua. Para não ser atropelada, deixou o
carro passar por cima do brinquedo, que perdeu a perna esquerda e o braço
direito.
Poliana ficou
desesperada, com medo de que o irmão mais velho lhe desse uma boa surra,
apegado do jeito que era às bonecas. Ela ainda não sabia da compreensão de
Bonerges, que não lhe fez nada. Pelo contrário. Deu um beijo em sua testa e os
dois irmãos brincaram juntos até o anoitecer com a boneca quebrada, que se
tornou deficiente física na sua imaginação infantil após ter sido torturada
pelo vilão Esqueleto.
Depois, Bonerges passou
a quebrar, de propósito, as pernas e braços de seus bonecos. Não para ganhar
novos brinquedos. Mas para dar asas à sua imaginação. Primeiro imaginou os
vilões sendo castigados e as mocinhas continuaram torturadas.
Bonerges cresceu e
parou de brincar com as bonecas sem braços, sem pernas e cabeças achatadas. Deu
todas para a sua irmã. Mudou de escola quando passou para o Ensino Médio. Fez
novos amigos, entre eles, um jovem sem braço, Felipe. Arrumou até uma namorada,
Bárbara.
As brincadeiras com
bonecas quebradas ficaram na infância de Bonerges, que só queria namorar. Até
Bárbara ser atropelada na saída do colégio e perder uma perna. Envergonhada da
sua nova condição, a menina terminou o namoro.
Ainda com o seu enorme
sentimento de caridade, Bonerges fez de tudo para reatar o romance, garantindo
que ele amava as mulheres do jeito que elas eram. Não se importava com a
aparência. Não conseguiu convencer. Bárbara arrumou outro namorado no Centro de
Reabilitação, que também não tinha uma perna.
O sentimento de compreensão
de Bonerges começou a ficar abalado. Mas ele tocou a vida pra frente. Não
namorou mais até concluir o ensino médio. Fez vestibular e passou para uma
faculdade pública onde cursaria Fisioterapia.
No curso superior
conheceu Suzana, uma linda moça que perdeu do braço até o ombro esquerdo por
causa de um câncer ósseo. Ela ainda nem tinha cabelo, que cresceu quando
começou a namorar Bonerges. Os dois se formaram, conseguiram, juntos, um
estágio no mesmo centro de reabilitação em que a ex-namorada Bárbara foi
tratada e se casaram.
Tiveram uma boa rotina
sexual. O prazer era mútuo. Não tiveram tempo de ter filhos. Um ano depois do casamento,
o câncer ósseo voltou, se espalhou por todo corpo e Suzana não resistiu.
Bonerges não quis mais se casar. Só desejava realizar as suas fantasias
sexuais. Com deficientes físicas.
A compreensão e
caridade deram lugar à loucura. Gradativamente. Começou tendo relações sexuais
consentidas com algumas meninas sem braço e sem pernas do Centro de
Reabilitação. Depois, passou a abusar de outras, quando foi demitido. Bonerges
já era o diretor da instituição. Foi processado por assédio sexual. Ainda não
tinha sido denunciado por estupro.
A loucura chegou ao
grau máximo quando ele passou a aliciar as fisioterapeutas e enfermeiras (as
mais bonitas, claro) para criar as suas próprias bonecas quebradas em seu
laboratório num sobrado velho na Lapa, como se fosse um atelier. Ele realizava
todas as suas fantasias. Algumas morriam de hemorragia. Se não morriam, ele
matava para não ser denunciado. Bonerges embalsamava os corpos e brincava.
Antes de ser acusado
pelos crimes que cometeu, o ex-fisioterapeuta com compreensão e caridade passou
a sequestrar moças sem ligação com o centro de reabilitação: estudantes,
profissionais liberais, jornalistas, modelos, atrizes e uma policial, que
serviu de isca para prendê-lo em flagrante.
Foi condenado por diversas
acusações de homicídio e ocultação de cadáver. Foi internado no Manicômio
Judiciário. A única visita que recebeu foi da irmã mais nova Poliana, que não
participou dos crimes do irmão, mas ajudou a encobri-los. Foi condenada como
cúmplice, mas cumpre a pena em regime aberto.
Poliana levou as velhas
bonecas quebradas da infância.
— Ué? Você não tinha
jogado as bonecas fora quando cresceu? Perguntou Bonerges.
— Não. Fiquei com pena,
tirei do lixo e guardei bem guardado para a gente brincar em nossos últimos
dias de vida.
Ele deu um beijo em sua
testa e os dois irmãos brincaram juntos até o fim do horário de visita com as
bonecas quebradas, deficientes físicas na sua imaginação psicótica.
* Jornalista e publicitário de formação e escritor
de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São
Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora
Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu
blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
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