quarta-feira, 23 de outubro de 2013

“A menina do quarto escuro” comove

* Por Mara Narciso

Peço desculpas por chamá-lo de Doutor, pois o nosso convívio no CTI e no Pronto Socorro assim o exige. É que os médicos, quando largam do avental e tomam da pena, querem ser vistos somente como escritores. E aqui relato o que o Doutor Manoel Fernandes acaba de escrever para nós. Terminado seu livro de estréia, que o alçou a Academia Montesclarense de Letras, naturalmente procura-se por outro livro seu. O autor apronta com seu leitor logo de cara. Enfia o pobre desavisado num mundo estático, onde os dias são sempre iguais. A miséria humana, da enjeitada Rosária, agravada pela limitação intelectual é a tônica dessa história de ruindades. “Retardada”, palavra forte, norteia a capacidade mental da mudinha, permitindo associá-la a “Macabéia”, de Clarice Lispector, em relação ao total desprovimento de atrativos físicos e mentais. Fica sugerido que quem não fala, pouco pensa, e não tem o dom de elaborar pensamentos complexos e muito menos abstrair-se. A tortura é ainda maior, quando a pessoa fica abafada em seus sofrimentos silenciosos.

A cena inicial é mais contundente que tiro de espingarda polveira, outra personagem constante no enredo, onipresente, incita e atemoriza. Entre eletrizante e chocante, fica-se com as duas, considerando-se o teor e as expressões escolhidas. Juntam-se soco no queixo e murro no estômago, na cena de estupro da menina de dez anos, que parece sete, devido à fome. Trocada por uma mula velha, a criança rejeitada pelo pai por ter matado a mãe no nascimento, serve ao comprador, o Capitão, “que lhe deposita suas imundícies”. E assim anda a narrativa a passos de mula de tropeiro, “aquele maligno violador de corpos”. Muitos dramas desfilam na casa paupérrima, e poucas palavras dão a dimensão segura do que se passa lá dentro: o capeta feito gente, trazendo o inferno para a terra. O tropel de cavalos é o sinal da chegada do monstro. “A voz da morte era macia. Falava com expressão pausada, respiração cadenciada, como que degustando cada palavra”.

Logo no começo é dado o aviso sobre uma possível mudança adiante, entre anarquista e novelesca, pois, contando casos no meio do mato, em tempos antigos, vem a expressão “felicidade não se compra em shopping center”. Soa falso como um disco voador pousado no meio da cidade. Mas tem sua razão de ser. Quando a protagonista sai do minúsculo povoado, do qual era excluída e odiada por ter parte com o demônio, e vai parar numa cidadezinha, a vida sai da câmera lenta (não o ritmo da história que é vibrante) e passa a acontecer.

Mas o leitor precisa tomar ar com força, preparando-se, pois a aventura de dores apenas começou. O fio condutor das desgraças terrenas se intensifica na adolescente bêbeda e prostituída, mas quando Deus faz um sapo, faz uma sapa, e os pares formam-se. Então, a mão de médico do autor constrói uma personagem do bem, Miguel, também médico e artista plástico fracassado devido ao alcoolismo, e por isso um grande perdedor. Desprezado pela sociedade, usa Rosária como última chance de redenção, esta, agora na condição de mulher indigente agonizante, agarra-se a paciente e usando medidas heróicas salva a si e a ela. A moribunda sem nome lhe dá forças para sair da fase de maldição. Leva-a para casa, ocasião em que o enredo toma o ritmo de cidade grande, com transformações aceleradas. A muda, já adulta, ex-mendiga e alcoólatra, e cujo cérebro havia sido maltratado por um parto difícil, fome e sofrimento permanentes, é alfabetizada, transformando-se em leitora de livros, funcionária de biblioteca e pintora secreta.

Essa improvável continuação é mais um tapa na cara do leitor, que, no entanto não se ressente e nem se acha traído. Acha graça da mirabolante virada. Talvez os pintores de sucesso não se vejam ridicularizados na trama. E nem mesmo os socialistas. Aprendemos que todo ser humano tem a capacidade de enxergar o mundo a sua maneira e o sofrimento não é prerrogativa dos inteligentes. E que o vivente merece boa sorte. Mas não os tenebrosos personagens criados pelo autor, que buscou no fundo dos infernos o Capitão, a mais perversa alma dos seus piores pesadelos. E, surpresa! Ela também é uma vítima, coisa que consta dos mais básicos manuais de psicopatias.

Corajosa, assim que pode, Rosária vai ao encontro do passado, para se certificar onde está o seu algoz e que fim levou o filho que teve dele. Há uma mistura de sensações, e no meio da mesmice fez-se a luz. Manoel Fernandes achou que entrar na Academia após seu primeiro livro foi precoce e precipitado. Discordo. Merecimento puro, porque, depois de garimpar boas histórias em décadas de consultório, temos não mais um livro, sim um belo livro, que transforma a vida áspera em palavras catadas na dor, e que, estranhamente, nos proporciona prazer.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


3 comentários:

  1. Bela resenha, Mara. A exemplo do Manoel, você é Doutora na medicina e nas letras. Abraços.

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  2. Depois de ler esta resenha minuciosa e bem elaborada confesso que estou curiosíssimo para ler o livro.

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