Tema e estilo como
principais obstáculos
A escritora baiana,
Elvira Foeppel, hoje já começa a ser reconhecida como figura importantíssima na
história literária do seu Estado e do País. O fato de ter apenas três livros
publicados, porém, não contribui para que esse reconhecimento seja rápido, pleno e consensual. Os historiadores de
Literatura e os pesquisadores em geral não têm o hábito de recorrer a arquivos
de jornais à cata de textos publicados por determinados escritores. Isso ocorre
ou por desinteresse, ou falta de tempo ou mesmo por dificuldades de acesso a
essas importantes fontes. E Elvira publicou a maior parte da sua produção
literária não em livros, mas em páginas de jornais e revistas, tanto da Bahia,
quanto, e principalmente, do Rio de Janeiro.
Vanilda Salignac
Mazzoni – provavelmente a melhor biógrafa da escritora baiana, nossa personagem
– atribui o não reconhecimento pleno da sua biografada a outros fatores. Entre estes,
destaca o fato dela escrever sobre mulheres, lutando por seus direitos à igualdade
numa época em que esse tipo de idéia era alvo, até, de chacota. Outro ponto que
menciona é a linha filosófica que Elvira adotou em seus textos, a “existencialista”,
de Jean-Paul Sartre, muito contestada na ocasião. E, por fim, atribui essa
espécie de rejeição ao fato dela se desinteressar de participar de encontros
literários, saraus, noites de autógrafos de colegas etc.etc.etc., ou seja,
desses compromissos, mais de caráter social do que propriamente literário, que,
mesmo que nada nos acrescentem, nos mantêm em evidência.
Eu teria muito, ainda,
a escrever sobre essa pioneira do feminismo, mas não o farei, pela escassez de
espaço e por não ser minha proposta esgotar o tema, mas apenas levantar algumas
questões pontuais para sua própria reflexão, paciente leitor. Vanilda esmiúça o
estilo elegante e moderno da nossa personagem – de modernidade muito à frente
do seu tempo, ressalte-se – em um meticuloso artigo acadêmico, intitulado “A
voz dissonante de Ilhéus: Elvira Foeppel”.
A biógrafa em questão
observa em determinado trecho: “A narrativa de Elvira Foeppel tem um modo muito
particular de construção: é o ‘olhar’ a vigiar o mundo. Esse olhar é sempre o
da personagem a observar o olhar do outro – é o ‘olhar’ sob o olhar". E
prossegue em sua análise: “São narradas e descritas personagens que não vêem
saída, que não acreditam em mudanças, que não têm perspectiva de que algo vá
transformar para melhor suas vidas. Na maioria representam mulheres que não se
adaptam à vida doméstica: são esposas desesperançosas por terem maridos que não
lhes dão atenção; mulheres que, após o casamento, tornaram-se apenas
donas-de-casa a esperar seus companheiros à noite com a mesa posta. Ou são mães
que não se realizam com a maternidade, que sentem o evento como um fardo,
contrariando todas as ideologias de que a mulher é incompleta sem filhos – muitos
personagens infantis são crianças aleijadas, doentes, perversas, famintas –
tornando suas mães tristes por não terem o sentimento esperado para aceitá-las.
Também os homens, idealizados por essas mulheres, não são parceiros amantes ou
companheiros, e a realização sexual e a amorosa decepcionam por não poder
encontrar essas qualidades em um único ser (...)”
Para que o leitor tenha
pelo menos pálida ideia da forma de escrever de Elvira Foeppel reproduzo,
abaixo, parte de seu conto “O crime”, com o qual integra a antologia “Histórias
da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963), que tomei como referência para
esta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos:
“O homem sacode as mãos
e respira lento.
-Eis porque é terrível,
terrível, terrível – armas do medo, começo de aflição, uma realidade medida,
compassada, o vento enxotando bichos de tamanho grosseiro, já não se ouve
passos no corredor, nem faces suadas, silêncio marcado de nervos, - ‘eu devo
insistir e rezar”, – talvez compreenda o
crime, este deliberado, feroz, onde o corpo, incrivelmente branco explode
vermelho, líquido, escorregadio, inerte, – a face marcada pela traição e o medo,
a vítima ali nublada de histórias sórdidas. O corpo não se erguerá mais à
altura de um arbusto pequeno, suas glândulas estão enrijecidas não inteiramente
gastas no ócio. A mão enorme, austera, aparecia inteira como flor usada, fria.
Os cabelos engordurados lambem as orelhas vingadas de sono, um absurdo cheiro
de leite cru toma camadas de ar próximo ao cadáver. Distanciado da luz está
opaco, numa posição casta – olhos calando segredos, pesadamente desbotados e
limpos. No assoalho a toalha de banho lembra afogado em banheira lisa, mancha felpuda,
parada, ele mexe dedos sujos no tecido grosso, deixa marcas ruins.
O homem chega à porta e
volta, contempla outra vez mais sua vítima – no peito o buraco monótono,
redondo, central onde a bala enodoada, escura, alarga carnes forçando-as à
diluição. Um último riso marca a face lívida, acossada de surpresa e dúvida, à
traição e a coisa ficava aí – nada mais, – o crime fora um risco de
superioridade do destino violentamente obsceno do homem. Seu nome? De dureza
física a sonância fanática e inconsciente sua tradução. Dionísio DIO-NÍ-SIO.
Passadas três horas o corpo ali ainda imóvel, sozinho, o sinal da descoberta
não fora dado, – isto ou aquilo impedira (...)”
Em suma, e recorro, de
novo, a Vanilda, há algumas explicações lógicas para a relativa falta de
reconhecimento à importância dessa escritora tão talentosa e criativa: “Pode-se
dizer que estes fatos discutidos constituem-se nos pontos nevrálgicos na obra
de Elvira Foeppel e que motivaram o seu esquecimento: uma escrita de autoria
feminina, o hermetismo de sua linguagem e o tema filosófico, todos vilões de
sua exclusão da historiografia literária brasileira”. Vivesse hoje, com a
mentalidade mais liberal vigente (posto que muito distante da ideal),
provavelmente a sorte de Elvira seria muito diferente da que foi. Poderia, até,
quem sabe, disputar, ombro a ombro, com sua colega canadense Alice Munro, o
Prêmio Nobel de Literatura. Isso, claro, se alguém se lembrasse de lançar sua
candidatura.
Boa leitura.
O Editor
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