

O gomo da maçã
* Por Sílvio Lancellotti
O pai entrou na casa bem tarde. Passava das dez da noite. E, por causa da Guerra, dos blackouts, da vigilância dos fiscais das luzes acesas, inclusive a sua própria mulher, nem uma espiriteira de álcool rebrilhava à sua chegada. Muito pior, escuridão à parte, faltava comida àquela família simples, o pai e a sua esposa, dois filhos entre os cinco e os seis anos de idade. O casal ainda teria uma menina, mais tarde, quando a vida se mostrasse mais confortável.
Naquela jornada, porém, depois de a mulher verificar, como voluntária, se todas as moradias do quarteirão já tinham apagado as suas lâmpadas, o pai entrou na casa com um presente mágico – uma maçã. Não relatou de que maneira ele havia obtido tal fruto precioso, um presente ou um surrupio, valor de um trabalho extra ou de um pulo arriscado sobre um muro qualquer. O pai só colocou a maçã na mesa, meramente encantada por um restício de luar, e a cortou em quatro pedaços. Isso mesmo, quatro pedaços de maçã, além de alguns nacos do pão de ontem e da água que a mãe pescara em uma bica do bairro. A família se encantou. Algo de doce a enriqueceria naquela noite.
O mano mais novo, porém, andava doente. Talvez não resistisse, sequer, aos dias seguintes. Depois do pão e da água, que os quatro sorveram, quase como condenados, o pai cortou o gomo da maçã do moleque caçula em dois – e entregou um dos pedaços partidos ao primogênito. Que, orgulhoso, estóico, honrado, imediatamente reagiu: “Não quero mais do que ele necessita”.
Ao que o pai replicou, com uma sabedoria dolorosa: “Eu acho que o seu irmão não agüenta mais uma semana de fome. Você é mais forte. Me obedeça e coma. Não quero perder os meus dois filhos.” O primogênito fingiu seguir a determinação do pai. Guardou o restolho da maçã num bolso da calça rustida e o levou ao aposento que dividia com o caçula. No frio daquela madrugada, fez com que o mano sugasse o que conseguia do restolho. Só relatou ao pai a verdade daquela noite no velório do caçula, quatro décadas depois. O mano passou pela Guerra e pela fome. Morreria num assalto, na cidade torpe.
* Diplomou-se em Arquitetura. Trabalhou na revista “Veja” de 1967 até 1976, onde se tornou editor de “Artes & Espetáculos”. Passou por “Vogue”, agências de publicidade, foi redator-chefe de “Istoé”, colunista da “Folha” e do “Estadão”, fez programas de gastronomia em várias emissoras de TV, virou comentarista de esportes da Band, Manchete e Record, até se fixar, em 2003, na ESPN. Trabalha, além da ESPN, na Reuters, na “Flash”, no portal Ig e na “Viva São Paulo” e é sócio da filha e do genro na Lancellotti Pizza Delivery – site de Internet www.lancellotti.com.br.
* Por Sílvio Lancellotti
O pai entrou na casa bem tarde. Passava das dez da noite. E, por causa da Guerra, dos blackouts, da vigilância dos fiscais das luzes acesas, inclusive a sua própria mulher, nem uma espiriteira de álcool rebrilhava à sua chegada. Muito pior, escuridão à parte, faltava comida àquela família simples, o pai e a sua esposa, dois filhos entre os cinco e os seis anos de idade. O casal ainda teria uma menina, mais tarde, quando a vida se mostrasse mais confortável.
Naquela jornada, porém, depois de a mulher verificar, como voluntária, se todas as moradias do quarteirão já tinham apagado as suas lâmpadas, o pai entrou na casa com um presente mágico – uma maçã. Não relatou de que maneira ele havia obtido tal fruto precioso, um presente ou um surrupio, valor de um trabalho extra ou de um pulo arriscado sobre um muro qualquer. O pai só colocou a maçã na mesa, meramente encantada por um restício de luar, e a cortou em quatro pedaços. Isso mesmo, quatro pedaços de maçã, além de alguns nacos do pão de ontem e da água que a mãe pescara em uma bica do bairro. A família se encantou. Algo de doce a enriqueceria naquela noite.
O mano mais novo, porém, andava doente. Talvez não resistisse, sequer, aos dias seguintes. Depois do pão e da água, que os quatro sorveram, quase como condenados, o pai cortou o gomo da maçã do moleque caçula em dois – e entregou um dos pedaços partidos ao primogênito. Que, orgulhoso, estóico, honrado, imediatamente reagiu: “Não quero mais do que ele necessita”.
Ao que o pai replicou, com uma sabedoria dolorosa: “Eu acho que o seu irmão não agüenta mais uma semana de fome. Você é mais forte. Me obedeça e coma. Não quero perder os meus dois filhos.” O primogênito fingiu seguir a determinação do pai. Guardou o restolho da maçã num bolso da calça rustida e o levou ao aposento que dividia com o caçula. No frio daquela madrugada, fez com que o mano sugasse o que conseguia do restolho. Só relatou ao pai a verdade daquela noite no velório do caçula, quatro décadas depois. O mano passou pela Guerra e pela fome. Morreria num assalto, na cidade torpe.
* Diplomou-se em Arquitetura. Trabalhou na revista “Veja” de 1967 até 1976, onde se tornou editor de “Artes & Espetáculos”. Passou por “Vogue”, agências de publicidade, foi redator-chefe de “Istoé”, colunista da “Folha” e do “Estadão”, fez programas de gastronomia em várias emissoras de TV, virou comentarista de esportes da Band, Manchete e Record, até se fixar, em 2003, na ESPN. Trabalha, além da ESPN, na Reuters, na “Flash”, no portal Ig e na “Viva São Paulo” e é sócio da filha e do genro na Lancellotti Pizza Delivery – site de Internet www.lancellotti.com.br.
Invejável amor de irmãos. Contado de forma dura, seca e cadente, feito uma marcha, exatamente como deve ser um ambiente de guerra. Maravilhoso!
ResponderExcluirNão passei por situação de fome aguda, minha
ResponderExcluirmãe nunca permitiu. Mas lembro-me da maçã cortada em cinco partes, quando ia pegar o meu pedaço, minha irmã surrupiava-me e saía a correr.
Minha mãe sempre ficava fora da partilha, dizia que não gostava da fruta.
O nome disso pra mim, é nobreza.
belo texto.
Abraços