quarta-feira, 9 de setembro de 2009




A propósito do livro de Raimundo Carrero...

* Por Marco Albertim

É certo que nem todo leitor entrevê os desdobramentos da trama de ficção, seja de que gênero for. Ainda assim, há subestimação em quem julga “que todo leitor é ingênuo.” Sobretudo em quem considera, ao mesmo tempo, que “(...) só pode ser bom escritor, o bom leitor.” Não é incongruência que desautoriza o literato, mesmo porque, o que mais chama atenção no último livro de Raimundo Carrero – A preparação do escritor – é a hierarquização dos vários elementos que compõem a obra literária. Hierarquização, aqui, não no sentido de distribuir autoridade a cada um dos elementos; mas no de separar as categorias, como na dissecação de um organismo sem perder de vista a interligação própria.

É com propriedade que Carrero afirma que “autor não é narrador. Narrador não é autor.” Pode soar esquisito porque remete à pergunta: livro só com narrador não tem autor? Mas Carrero fundamenta bem, porquanto se apoia em Guimarães Rosa, Machado de Assis. Lembra que em Grande Sertão – Veredas, o narrador não é Rosas, é o personagem Riobaldo. Em Dom Casmurro, argumenta, Bentinho é o narrador oculto e Dom Casmurro é o narrador onisciente. Inda que se socorrendo em estudo de Fernando Sabino, Carrero, a partir daí, menciona, alertando-nos, o grau de importância de cada personagem. Sem esquecer que por trás de todos há o autor, como alguém manipulando marionetes.

Não podia ser de outro modo, posto que Carrero é autor de longo costado. Chama a atenção, ele, para “a dança mágica” que há quando a narrativa se desenvolve a partir do olhar do personagem ou das personagens. E apoia-se em Clarice Lispector – A hora da estrela. Conforme Carrero, referindo-se ao personagem, “Rodrigo é o representante de Clarice, mas não é Clarice. É a voz, a escrita da autora. Não é ela, todavia.” Sem o dizer, Raimundo Carrero confere, reconhece autonomia no personagem, para concluir com acerto, “(...) pela primeira leitura, sempre perigosa e enganosa.”

O livro é dividido em lições e todo ele é uma lição objetiva, didática, um chamariz sem disfarces, porque com frequencia adverte, chama, repete como nas primeiras lições de alfabetização; repete à exaustão. Ressente-se da ausência de recomendações sobre a importância da profundidade que também o texto literário deve ter. A chance ele a deixou escapar quando escreveu: “O texto não pode perder a sua verdade, a verdade interior, a verdade íntima, ainda que seja a mais exagerada possível. Isto é, não é a verdade social, por exemplo, mas a verdade ficcional.” Não atingiu o fundo do poço, o poço da profundidade, mas chegou perto.Como ficcionista conhecedor da infinitude do texto de ficção, arremata: “Na sociedade real, um homem não pode ter asas. Na ficção, pode.”

Há explicações sobre metáforas, símiles, sobre como as cenas movimentam, os cenários escondem. Não deixou passar um fio de cabelo, nada que se sobressaia ou que se oculte na textura da literatura de ficção. É cosmético dizer que “Cena é o personagem em ação, e cenário mostra paisagens, ambientes e até pessoas...” É! Mas Carrero está escrevendo para “aprendizes de escritor”, inda que acrescente “para escritores, que pretendem se aperfeiçoar na arte de escrever narrativas.” Está dito no começo do livro, onde se distingue a vocação narcisística do autor, seu veio falastrão. A preparação do escritor sobrevive sem o amparo de muletas, do gênero: “Somos pedras que se consomem, meu romance de 1994, que conquistou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, e o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional...” Da menção a Graciliano Ramos, cujo rodapé é transcrito pelo autor: “Vidas Secas, Do meu caderno de notas, Raimundo Carrero...” Ou, na referência a cenas: “A cena (...) é do que meu romance O senhor dos sonhos, de 1989, com seis edições publicadas pela Editora Abril (...), e mais três edições pela Bagaço...”

Discutível é a afirmação de que “escritor não tem estilo – quem tem estilo é o personagem.” O próprio autor optou pelo estilo coloquial em A preparação...”Pausa para um cafezinho. Quem fuma, fuma, quem não fuma se sacode”, recomenda para o intervalo do leitor/aluno. Com propriedade ele se refere à pulsação narrativa do personagem, da cena, do leitor. Mas desnecessário é dizer que “Tudo começou com minha teoria da Pulsação Narrativa (o assunto pode ser encontrado com detalhes no meu livro Os segredos da ficção...”

De outro modo, não é demais dizer que “o narrador é para a ficção o que o cenógrafo representa para o teatro.” Que “um romance é o resultado da organização interna. Dos fatos e dos cenários.” Que “no campo da arte não existe nada que seja descartado totalmente. Sobretudo na literatura.” E “que não existem regras fixas na ficção.” Há quem esqueça...

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

2 comentários:

  1. Seu texto leva o leitor a querer ler o livro, e nisso já cumpriu seu papel. Fiquei curiosa, Marco, vou ler o livro.
    Abraços
    Risomar

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  2. Também fiquei curiosa.
    Adorei o último parágrafo.

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