terça-feira, 1 de setembro de 2009




Dois tempos e uma quase história

* Por Mara Narciso

Tempo Um

A noite vai longe, e o ranger da rede mistura-se com o barulho do vento, dos sapos e dos grilos que vêm do rio. Não tem lua, mas tem escuridão e estrelas. O homem está deitado adiando um problema difícil de ser resolvido. A calmaria avança, a noite aprofunda-se, no entanto ele não consegue entrar na casa. Não quer dar de cara com a mulher, e foge dela há meses.

Na casinha do lado de cá, outra mulher, só que grávida de poucos meses vomita tudo e até o próprio dia. Está de entojo. Casou-se no mesmo mês do casal da casinha logo ali, onde o sofrimento tomou conta desde a primeira noite. O ruído da rede é a senha de que também hoje o casal dormirá separado.

A casada virgem contou que o casamento aconteceu há três meses e nada. O enlace não foi consumado por total impossibilidade do marido. O ano é 1954. Dezembro do ano anterior já virou a esquina, e a virgindade e o choro estão no corpo da mulher do lado.

As varandas fazem frente uma para a outra, e tudo que acontece lá, se sabe aqui. A grávida com enjôos não consegue arrumar a casa e nem fazer a comida. Fica largada na sua rede, sem balançar, para não aumentar o mal estar. Casou-se e não menstruou mais. Sabe que em seis meses nasce o filho que espera. Quando pára um pouco de vomitar, faz a comida, mas o cheiro de gordura é um sofrimento, só menor do que a penitência da esposa rejeitada, humilhada, e cheia de culpa. Inconformada, a virgem acredita que o marido não a quer por incompetência dela. Nem pensa em conversar sobre o assunto. Nem com o marido e nem com a família. Preferiu queixar-se à vizinha. Quando a outra sai correndo para vomitar, mais infeliz fica. Difícil saber quem está pior, mas a virgem sabe que a sua situação é péssima entre as piores.

Um dia, se decide e envia uma carta à mãe que vem buscá-la. É a sua redenção e a do marido. Há meses dormindo numa rede, no frio da varanda, com lua ou sem lua, sofrendo de inapetência em consumar o casamento, ansiava pela liberdade. Levada a quase esposa, fica a sensação de alforria. Livre para ser o que sempre foi: um homem inapto para a vida de casado, agora livre para escolher outro caminho, sem precisar fingir ou representar.

Tempo Dois

Muitas décadas se passaram. Agora, no século XXI, nem todos os casais são namorados. Muitos apenas ficam. Não há compromisso. Ter sexo no primeiro encontro, se não é exigência, é quase uma obrigação. Poucas moças valorizam a virgindade. É preciso não perder tempo, e o teste drive é um desejo da maioria. Casa-se mais tarde, mas ainda casa-se.

Quem trabalha com casamentos diz que nunca se casou tanto, e o mês preferencial é setembro, e não maio como antes. Um deles aconteceu há cem dias.

A família da noiva não tinha posses, mas fez uma cerimônia arrumada. No começo das chuvas o noivo veio conhecer a família. O pai da noiva gostou do rapaz, por ser bem apessoado, falante e trabalhador. Com tantos predicados, muitos acreditaram no sucesso do casamento. O noivo comprou o que foi preciso para montar o apartamento, e a noiva fez o enxoval a contento. Após o casamento viajaram para outro estado, onde o casal iria morar.

A moça, de 23 anos, não estava trabalhando ainda, mas procurava emprego por lá. A família telefonava em busca de notícias, pois sentia que ela, muito alegre até o casamento, estava em grandes silêncios, pouco dada a conversas. Tentavam falar e ela fugia, não querendo dizer nada. A mãe desconfiava que algo estivesse errado.

Uma mãe nunca se engana. Pegou um ônibus e partiu em busca de notícias in loco. Tinha mais de três meses que não via a menina. Quando a enxergou viu nos seus olhos inchados que algo tinha acontecido. Mas não tinha acontecido nada. Estava aí o problema. Virgem até o casamento, a moça continuava tão virgem quanto antes. Enquanto o tempo avançava e nada do encontro carnal acontecer, a moça, no começo, esperava o marido, que se alongava na sala e na programação da TV, e logo compreendeu tudo. Os barulhos das buzinas, e os flashes de luz da TV encontravam seus soluços e lágrimas numa dor profunda de desprezada. O rapaz dormia no sofá, enquanto a vergonha a deixava cada dia mais triste. O não-marido a informou não ter atração por mulheres. A família a resgatou e procura desfazer o casamento.

Num tempo de comunicação irrestrita, ainda assim não se diz o essencial. Pobres moços!

* Médica, acadêmica do sétimo período de Jornalismo e autora o livro “Segurando a Hiperatividade”

4 comentários:

  1. A tralha tecnológica inibe a comunicação. O que importa é pele e olho, pois quando há arrepios sabem todos que o tesão sexual e/ou emocional entrou em vigor. Esse, o caminho mais indicado. Aí, é só correr pro abraço. E vamoquevamo!

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  2. Pois é Daniel, 55 anos separam os dois casamentos. O primeiro a minha mãe me contou. Ela era a grávida. O outro, soube na semana passada. Um pai aflito falou-me do casamento em vias de ser anulado. Agradeço o comentário.

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  3. É, Mara, antigamente historias como esta eram quase comuns. Ouvi algumas semelhantes. Hoje a coisa mudou. Tudo é mais claro, mais explícito, mas quantos casais sofreram por precisar aparentar algo que não existia, não é? Gostei m uito do seu texto.
    Parabéns!
    Risomar

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  4. Risomar, agradeço a atenção da leitura e do comentário. O que me surpreendeu foi o segundo caso ter acontecido agora. Custei a acreditar, mas isso ainda existe. Obrigada pelo elogio.

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