sábado, 4 de fevereiro de 2017

Quando a felicidade não é possível


* Por Anna Lee


Melodia (Da Ópera de Orfeu e Eurídice) invade Páginas da vida. E provoca em mim um prolongado suspiro em razão do alívio, quase uma satisfação, que a música leva ao mundo de infortúnios criado por Manoel Carlos para a novela das oito da Globo.

Entra em cena a bailarina Giselle, uma adolescente de 15 anos. Certo dia, inesperadamente, ela se depara na porta do edifício em que mora com um piano de cauda que está sendo içado por cordas para uma das janelas. Ela pára, admirada. Quem seria o pianista?

A resposta Giselle obtém quando escuta uma linda música vinda da porta vizinha à sua. Como se estivesse hipnotizada, ela persegue a melodia. A porta está entreaberta e a menina penetra no apartamento recém-ocupado. Fascinada, percorre o salão por entre móveis e caixotes, deixa-se guiar pela música e, então, encontra um rapaz sentado diante do piano. Ela não consegue ver o rosto dele, apenas os cabelos cacheados. Ao pressentir que alguém o observa, Luciano vira e encara Giselle. Ele tem olhos profundos e desprotegidos. O amor surge à primeira vista.

Os dois passam a se encontrar na casa do rapaz, quando os pais saem para trabalhar. Luciano toca piano para Giselle dançar e assim passam muitas tardes. Vivem um amor de poucas palavras e muito lirismo. Melodia continua a ressoar na novela das oito, executada por Nelson Freire.

O tema musical cai bem ao casal. O mito grego de Orfeu e Eurídice é uma das mais famosas histórias de amor de todos os tempos, em que o heróique, com a sua música, tem o poder de comover e apaziguar os animais selvagens – desce ao inferno para recuperar a amada morta. O inferno de Giselle é a bulimia, doença da qual sofre desde criança, por causa da pressão da mãe que exige que ela seja magra para se tornar uma grande bailarina. Depois de conhecer o pianista, a menina passa a gostar de balé e talvez tenha um futuro brilhante.

Giselle e Luciano estão apaixonados. Passam horas e mais horas juntos. Quase não se falam, mas entreolham-se demoradamente. Passeiam pelo Leblon de mãos dadas. Andam de bicicleta pela Lagoa. Ao fundo, Melodia ainda ressoa.

De repente, os dois adolescentes são abordados por bandidos. Luciano é filho de uma procuradora da República sempre envolvida com processos e denúncias contra criminosos, que agora querem se vingar atingindo o rapaz. Vida real. Páginas da vida. Luciano se assusta. Manda a namorada fugir. Os dois correm de bicicleta desesperadamente. Giselle atravessa uma rua, um carro vem em sua direção, ela não e é atropelada.

Nãomais clima para Melodia. Nãofelicidade possível na novela de Manoel Carlos, que parece convicto de que toda grande obra é feita com a gestação da dor. Dor essa que ele deixa refletir nas suas páginas da vida.

Impressiona o panorama que Manoel Carlos traça da calamidade que é ser humano: o namorado abandona a namorada grávida de gêmeos; a mãe rejeita a filha grávida; a avó dá como morta a neta que tem síndrome de Down; o alcoólatra é deixado pela mulher e transforma a vida da filha num inferno; a freira se culpa pelo passado e se pune ajoelhando-se em pedras... Em Páginas da Vidatraição; ambição; casamentos desfeitos; inveja, ira; luxúria; avareza... Nenhum personagem de Manoel Carlos é feliz, não importa a crença, a raça, a condição social ou o caráter. Todos sofrem. Giselle e Luciano não resistiram. Foram separados. O pianista foi passar uns tempos em Petrópolis. A bailarina chora. Temo que Melodia nunca mais me faça suspirar.

·        Texto publicado na Revista Flash

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.




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