sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Exotismos franceses originários da língua tupi

* Por Rodolfo Garcia


“Que de mots des langues celtique et germanique nous auroient conservé Jules-César et Tacite, si les productions des pays septentrionaux visités par les Romains, avoient differé autant des productions de l’Italie et de l’Espagne que de celles de l’Amérique équinoxiale”. Alexandre de Humboldt, Voyage aux Régions Equinoxiales, III, 340. Paris,1817.

É fato sabido que as línguas americanas em alta escala contribuíram para o desenvolvimento do idioma dos descobridores ou conquistadores do Novo Mundo.

As narrativas e viagens do século XVI e parte do seguinte, encerrando as singularidades (para empregar a apropriada expressão da época) notadas na fauna e na flora das terras novamente achadas, estão inçadas dos termos designativos dos animais, plantas e mais objetos até então desconhecidos, que os autores viam e descreviam pela primeira vez.

O tupi foi dos maiores contribuintes nesse saqueio operado pela civilização ocidental, o que se explica pela circunstância de que os povos, que falavam a língua depois assim chamada, eram os ocupantes da extensão mais considerável do litoral sul-americano e foram os primeiros a entrar em contato ou em choque com os navegantes e traficantes europeus, os franceses em magna parte.

Dos livros de viagens passaram aqueles termos, mais ou menos alterados, para a literatura científica, para a linguagem corrente, e daí aos dicionários, incorporados ao patrimônio idiomático de cada povo. Sofreram naturalmente modificação gráfica, de acordo com a organização glótica dos indivíduos que os receberam; mas essa alteração não é tanta que a um exame mais atento se não denuncie a origem da palavra e lhe não permita a identificação quanto possível perfeita.

Não é de estranhar que de Hans Staden para Anthony Knivet, um alemão, outro inglês, as diferenças de grafia para as mesmas palavras brasílicas que registraram sejam mais sensíveis, ao passo que, entre franceses, como André Thévet, Jean de Léry, Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux, há de notar-se relativa homogeneidade de escrita. Mesmo assim, existe nesse particular alguma discordância em seus livros respectivos. Para exemplo, considerados aqui apenas os autores franceses, tome-se de seus escritos o conhecido vocábulo ibirapitanga, nome tupi da Caesalpinia echinata, e ver-se-á que para Thévet é oraboutan, para Léry araboutan, para d’Abbeville ouyrapouitan, e para d’Évreux ybouyra-poitan. Observar-se-á que a diferença de grafia entre os dois primeiros não é mais pronunciada do que a que ocorre entre os dois últimos; mas há que levar-se em conta que estes foram compartes na missão maranhense, sendo o livro de um complemento do livro do outro, além de que ambos tiveram uma fonte comum de informações, provadamente em Des Vaux e em David Migan, com os quais se acharam na sua chamada França Equinocial. E considere-se que Thévet e Léry se referem a tribos do Sul, enquanto d’Abbeville e d’Évreux se reportam às do Norte; em seus escritos, por isso mesmo, é natural que prevaleçam certas influências dialetais, que aparecem não só no vocábulo proposto como em muitíssimos outros.

Nos autores franceses, que são os que interessam ao caso presente, os vocábulos tupis vêm transcritos em forma puramente francesa ou afrancesada, algumas vezes arbitrária e caprichosa. A tarefa de sua restauração gráfica é fácil, relativamente, atendida a equivalência de som entre eles e seus correspondentes no tupi dos catequistas ibéricos.

Tem-se assim, grosso modo: eu, ei, u, ouyh, nos autores franceses, valendo por i ou y nos autores portugueses ou brasileiros; au, oi ou oy e ou, correspondendo da mesma forma e respectivamente a ou, oa e u. Os demais sons não apresentam diferenças maiores. Conhecida a correspondência fonética, também é fácil estabelecer a equivalência entre os respectivos temas. Assim, tem-se nos primeiros ouä, por guá ou uá, prefixo; nos segundos; oui ou ouy, por gui, prefixo; ap ou aue (u=v), por aba, sufixo nominal; ouassou ou oussou, por guaçu, açu ou uçu, sufixo aumentativo; miri, miry, y ou y por mirim, i ou im, sufixo diminutivo; été por etê, sufixo de superioridade; ran por rana, sufixo de semelhança; eum por eima, sufixo de negação; peuue (o segundo u = v) e pem, por péba e pema, chato, plano; catou por catú, bom; éen por eêm, doce; rup por róba, amargo, amargoso; teuue (o segundo u = v), por tiba, sufixo que indica abundância ou frequência de alguma coisa, correspondente ao latim etum e ao português al, e que aparece comumente nos topônimos, exprimindo o ubi; endaue (u=v) por endaba, lugar, sítio, pouso, etc. Os qualificativos de cor, como vêm transcritos nos autores franceses, pouca alteração oferecem; tem-se aí: piran, pouytan ou poytan, por piranga ou pitanga, vermelho; tin por tinga, branco; iou, youp ou iouue (o segundo u=v), por yú, jú ou jubá,, amarelo; aubouyh ou aubouih, por obi, azul ou verde; on por un ou una, negro; pinim ou pynim, por pinîma, pintado, pontuado, salpicado de pontos. O metaplasma mb é pouco frequente nos escritos franceses: os vocábulos que o deveriam conter, ora se apresentam com b, ora com m. O mesmo se nota com relação a nd, que ora leva uma, ora outra letra. A articulação b vem quase sempre mudada em v (u), e às vezes em p; o l vale por r muito brando; o c chiante vem com ch; o grupo nh é geralmente substituído por gn; o p inicial, quando vem precedido de gama nasal, muda-se em m, etc.

Passando dessas partículas, vistas sumariamente, aos vocábulos por elas formados, tem-se, conforme suas categorias:

a) para as denominações vegetais, que mais abundam nos autores citados: ouyra ou ouira e oua, por ibirá e suas corrutelas, árvore, pau; caa e ca, por caá, planta erva, mato; vue por yba, árvore em geral; vua por ybá, fruto; ove ou oue por oba, folha.

b) para os nomes de animais: só por çoó, animal em geral, o bicho, a caça; boy por mbói, cobra; pira e acara ou cara, peixe de pele ou couro, na primeira forma, ou de escama na segunda, por pirá e acará ou cará; ouyra, ave, pássaro, por guirá; ara, dos Psitacídeos, por ará; ourou, dos Galináceos, por urú; arou por arú ou guarú, sapo; berou ou merou, por mberú, mosca; eyre, por eira ou ira, abalha, mel; oussa, por uçá, caranguejo; usa por içá, formiga, etc.

Em relação aos nomes de instrumentos, utensílios e outros, bastante variados em razão da complexidade dos objetos que designavam ou ainda designam, nem por isso se torna mais difícil sua identificação, de acordo com os radicais acima expostos. Para exemplos dessa classe de nomes podem ser citados nas duas formas em que aparecem: boucan (mockaein, Hans Staden) por moquém, grelha para assar carne de peixe, por extensão a própria carne ou peixe; couy, por cúia, vasilha; ourou por urú, cesto; panacon, por panacum ou panacú, cesto grande, oblongo; patoua, por patuá, saco de couro, ou pano; pinda por pindá, anzol; puyssa por puçá, aparelho de pescar; tabacoura, por tapacurá, jarreteiras, ligas, ou axorcas feitas de fios de algodão, que usavam as donzelas núbeis , etc., sem contar muitos outros que permaneceram com a mesma grafia no francês e no português. Aliás, em grande parte, esses termos se acham incorporados ao léxico luso-brasileiro, ou recolhidos aos glossários tupis.

Não é demais observar que numerosas palavras americanas de procedência outra que não o tupi aparecem nas relações de viagens referentes ao Brasil e chegaram mesmo a penetrar no dicionário brasileiro. Nesse sentido o contingente das línguas das Grandes Antilhas, onde primeiro aportaram os descobridores, é dos mais copiosos. Segundo Humboldt, podem ser apontados, como de interesse para a botânica descritiva, os vocábulos seguintes; ahi (Capsicum baccatum); batata (Convolvulus batatas); bilhao (Heliconia bihai); caimito (Chrysophyllum caimito); cahoba (Swietenia mahagoni); a palavra casabi ou cassave não se usa senão para o pão feito das raízes de Maniot; o nome da planta juca foi assim ouvido por Américo Vespucci na costa de Paria, Lettera a Saderini; age ou ajes (Dioscorea alata); copei (Clusia alba) guyacan (Guajacum officinale); guajaba (Psidium pyreferum); guanavano (Anona muricata); mani (Arachis hypogoea); guama (Inga laurina); henequen (Agave antillarum, A. americana), originariamente uma erva, com a qual, segundo as narrativas dos primitivos viajantes, os haitianos cortavam os metais, hoje todo fio resistente; hicaco (Chysobolanus iaco); maghei ou maguey (Agave americana, e Lucuma mammosa); mahiz, maiz (Zea mays); mangle (Rhizophora mangle); pitahaja (Cereus pitahaya); ceiba (Bambox ceiba); tuna (Opuntia tuna); ainda nomes relativos à fauna, como hicotea (quelônio); iguana (Lacerta iguana) manati (Manatus americanus ou australis); nigua (Pulex, hoje Tunga penetrans); cocujo, espécie de vaga-lume (Eclater noctilucus); nomes de utensílios, instrumentos e outros, como hamaca (leito pênsil, rede); barbacoa (jirau formado de paus sobre forquetas para secar carnes e tassalhos de animais, as folhas do mate, etc.); canei ou buhio (casa redonda, cabana); chicha ou tschischa (bebida fermentada); macana (porrete ou maça de madeira pesada, geralmente da palmeira Guilielma macna); tabaco (não a erva, mas o canudo de que se serviam para aspirar a fumaça do tabaco); cacique (chefe), etc. Outras palavras americanas, não originárias da língua do Haiti, mas vozes árabes assimiladas ao castelhano, ainda hoje se usam na América espanhola, por exemplo: caiman (crocodilo); piragua (embarcação); papaja (Carica); aguacate (Persea); tarabita (aparelho de transporte entre as margens de um rio); páramo (campo deserto, raso, aberto a todos os ventos, nos planaltos das montanhas); e mais banana (Musas), da língua Mbaiá, do Grande Chaco; arepa (espécie de torta ou pão feito de milho); curiava (canoa alongada); guayuco (peça da vestimenta); tutuma (fruto da Crescentia cujete, ou vaso para líquido); e inúmeras outras palavras.

Arrolando neste ensaio os principais exotismos franceses que têm origem no tupi, procurou-se estabelecer, de conformidade com a lição dos antigos autores, a época de sua incorporação ao léxico francês, e, quando possível, a da sua admissão pela Academia Francesa. Para isso foram utilizadas as oito edições do Dicionário da Academia, o de Boiste, que é o verdadeiro pan lexicon francês, como o qualificou Charles Nodier, e mais os de Bescherelle, de Littré e de Hatzfeld e Darmesteter. Algumas dessas palavras não foram registradas nos dicionários; figuram, no entanto, nos tratados de Laet, Piso, Marcgrave e outros, com foros na ciência.



* Historiador e bacharel em Direito, membro da Academia Brasileira de Letras.

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