sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Retirando o véu da mulher árabe

* Por Gilberto Abrão


No momento em que alguém diz o substantivo com o qualificativo “mulher árabe” o que vem à mente dos ocidentais? Sejamos sinceros, a qual imagem nos remete? É bem possível que nos venha a imagem de uma mulher coberta com o hijab – um lenço amarrado à cabeça –, acompanhado por um vestido longo com mangas compridas; um vestido folgado para não realçar as linhas do corpo. Ou, mais rígido ainda, uma mulher trajando o niqab, que é totalmente preto e cobre o rosto, deixando aparecer somente os olhos. Para sermos ainda mais radicais, podemos pensar em uma mulher usando a burca, aquele traje que cobre o corpo inteiro, inclusive os olhos, e a mulher enxerga através de uma telinha – vestimenta usada pelas mulheres do Afeganistão, que são muçulmanas, mas não árabes.

Para os ocidentais, esses trajes se tornaram símbolo da submissão e da carência dos direitos básicos. Quando vemos uma fotografia de uma mulher com essas vestimentas, imediatamente pensamos: “Coitadinha! Tem que obedecer cegamente ao marido, não pode estudar, não pode exercer a profissão que deseja, não tem direito a votar, nem a ser votada…” Seria essa mesmo a realidade da mulher árabe? É claro que essa imagem procede se formos à Arábia Saudita, onde as normas são regidas por leis de uma seita islâmica ultraconservadora – os wahabitas – e que, por mais paradoxal que possa parecer, não têm nada a ver com a verdadeira essência do Islã. A mulher que vive lá realmente tem direitos muito limitados. Não vota, nem é votada; só pode exercer certas profissões nas áreas da educação ou medicina (mas só para mulheres); não pode viajar sem estar acompanhada do marido, pai, irmão ou filho. Mas seria a mulher da Arábia Saudita o exemplo preciso da mulher árabe de hoje? Absolutamente não.

A mulher árabe, atualmente, está mais próxima dos ensinamentos do Alcorão do que nunca. Em menor ou maior grau, ela tem liberdade, pode exercer qualquer profissão – desde motorista de táxi até comandante de aviões. Ela pode frequentar as melhores universidades que suas condições financeiras permitirem; pode votar e ser votada. Enfim, as mulheres árabes participam de um amplo leque de atividades profissionais, educacionais, acadêmicas e políticas em seus países. Na Síria e no Líbano, por exemplo, a mulher pode votar e ser votada desde 1947. No Egito, desde 1952; na Tunísia, desde 1956. Quase todos os países árabes têm mulheres em seus congressos.

Espera aí, eu disse “próxima dos ensinamentos do Alcorão”? Sim, porque quando o islamismo surgiu, no início do século VII, veio conferir à mulher da península Arábica um status de liberdade, de direitos, de posição e de prestígio dentro da comunidade, libertando-a da condição inferior que possuía dentro da sociedade tribal em que vivia. Em nenhuma sociedade do mundo da época, isto é, no século VII – inclusive Roma e Grécia –, a mulher chegou a atingir um estágio tão elevado de liberdade, respeitabilidade, direitos e de participação na sociedade como a mulher árabe após o advento do Islã. Entretanto, a sociedade patriarcal árabe não conseguiu quebrar todas as correntes que a prendiam aos hábitos tribais pré-islâmicos. Portanto, muitas coletividades rurais e nômades (beduínos), tinham o islamismo como a religião a ser seguida nos dogmas e práticas, mas as mulheres dessas comunidades permaneciam presas aos velhos costumes da jahilya (ignorância) – como é chamado o período anterior ao advento do Islã.

Dentro da história Islâmica há a participação de várias mulheres que ajudaram a expandir a religião muçulmana – a começar pela primeira esposa do Profeta Mohamed, Khadija bint Khueilid; Fátima, filha do Profeta com Khadija; Zainab bint Ali; Aisha bint Abu Bakr, a última esposa do Profeta que, inclusive, participou de uma guerra contra o Imã Ali, causando um racha político no Islã. Desse racha, surgiram os xiitas, ou seja, os partidários de Ali. Nos séculos que se seguiram foi grande a participação da mulher no tecido social islâmico como cádi – juíza, governante, mestre de jurisprudência islâmica –; no campo da medicina; nas artes da eloquência, poesia e narrativa.

Com a chegada do Império Otomano, a mulher árabe estagnou. Aliás, convém afirmar que os homens também pararam no tempo durante os quase quinhentos anos de domínio otomano. Ninguém, exceto a elite árabe, tinha acesso às escolas e universidades. O ensino disponível à maioria limitava-se ao aprendizado da leitura do Alcorão – uma leitura rude, sem a devida compreensão do que se lia. Foram, então, cinco séculos de escuridão.

As duas guerras mundiais passaram com todos seus efeitos positivos ou negativos e, hoje, a mulher árabe disputa com os homens os bancos das universidades, os cargos acadêmicos, as vagas de médicos nos hospitais; debate jurisprudência islâmica com os sábios, participa ativamente da política e faz revoluções. Sem dúvida, foi formidável a participação das mulheres nas derrubadas de governos da Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen. Assim como tem sido extraordinária a participação das mulheres no levante que está havendo no Bahrein e no suporte político que têm dado ao presidente da Síria, Bashar al Assad.

Nos meus dois romances – especialmente em Mohamed, o latoeiro – procuro apresentar a mulher árabe que, embora seja iletrada, briga por seus ideais, pelos sonhos que acalenta; sai de casa e vai à luta, como é o caso de Yemna, irmã do herói da história. Em menor escala, Aqul, que lutava para conquistar uma posição de domínio na esfera familiar e com isso garantir sua segurança financeira e a de sua sobrinha, Kafa. Yemna e Aqul, duas mulheres guerreiras, embora opostas, que viveram no início até a segunda metade do século passado, em uma sociedade rural e primitiva da Síria, durante e após o Império Otomano.

Mas e o véu? O hijab não seria o símbolo da submissão? Elas não são obrigadas a andar “enroladas com aqueles panos”? Não, em absoluto! Só é obrigatório na Arábia Saudita, por razões que já expliquei. Nos demais países árabes, anda de hijab quem quer. Entretanto, devido à islamofobia que grassa no Ocidente, muitas mulheres universitárias, acadêmicas, executivas, profissionais liberais estão aderindo ao hijab. Isso se deve nem tanto à obediência aos dogmas religiosos, mas muito mais como uma orgulhosa afirmação de identidade. Como quem diz, de forma altiva e um tanto arrogante, para todo o mundo ver e ouvir: “Eu sou muçulmana! E daí?”


* Jornalista e escritor.

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