sábado, 18 de fevereiro de 2017

Nelson Ferreira

* Por Isabelle Barros


Há quarenta anos, a música de Pernambuco ficou em tom menor. Em 1976, o maestro Nelson Ferreira morreu e levou com ele um talento musical prodigioso, que deu origem a cerca de 600 composições, entre eles frevos ouvidos até hoje nas ruas, casas e clubes. Se nomes como Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon ainda são lembrados, é por causa dele e de sua composição mais famosa, Evocação nº 1. No entanto, a importância de Nelson Ferreira não se resume às suas composições e ao seu talento como pianista e arranjador - como se isso fosse pouco. Ele foi o responsável por revelar talentos e desbravar um espaço novo para a música pernambucana como diretor artístico da Rádio Clube de Pernambuco e da Fábrica de Discos Rozenblit. Na primeira, impulsionou carreiras como a de Sivuca (1930-2006), que ficou grato a Nelson até o fim de sua vida, e, na segunda, gravou frevos que não estariam registrados se não fossem pela sua ligação umbilical com a música pernambucana.

Nelson Ferreira já era um compositor e pianista bastante conhecido no Recife, onde morava desde um ano de idade, antes de entrar na Rádio Clube de Pernambuco, em 1931. A emissora era a única do Nordeste e o rádio começava a se popularizar como meio de comunicação. A versatilidade do músico, por sua vez, havia sido moldada após sua experiência como pianista do cinema mudo. “O trabalho musical era, na maioria das vezes, feito de improviso, para acompanhar as cenas mais distintas de comédias, dramas e romances”, explica o pesquisador Renato Phaelante. Precoce, já havia composto e editado, aos 14 anos, a valsa Vitória, para a Companhia de Seguros Vitalícia Pernambucana. Nessa época, ele também tinha a seu favor a gravação de Borboleta não é ave, em 1923, o primeiro frevo registrado pela indústria fonográfica, e várias músicas que ficavam na boca do povo durante os Carnavais.

No entanto, para a jornalista e biógrafa de Nelson Ferreira, Angela Fernanda Belfort, a incursão na rádio foi uma virada fundamental. “Ao meu ver, a maior contribuição dele à cultura não foi como compositor, mas como diretor artístico da Rádio Clube, a partir de 1934. Quando ele assumiu o cargo, abriu as portas da rádio para um grupo que compunha frevos de primeira. Nelson Ferreira massificou o ritmo e a emissora tinha uma audiência enorme enquanto ele ocupou essa função. Com a execução nas rádios, surgiu um mercado local e, por isso, o frevo não se tornou uma música de gueto”. A versatilidade dele também transpareceu nas outras funções exercidas na empresa: produtor, arranjador, apresentador do programa A hora azul das senhorinhas e até radioator, além de conduzir a orquestra da estação. Fora da rádio, ainda encontrava tempo para incursões nas artes cênicas, contribuindo com músicas para o Grupo Gente Nossa, fundado por Samuel Campelo, e com o Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP).

A visibilidade de Nelson como diretor artístico na Rádio Clube o levou a desempenhar a mesma função na Fábrica de Discos Rozenblit a partir da fundação da gravadora, em 1953. Lá, teve a mesma atitude que balizou sua atuação na rádio: se cercou dos melhores músicos disponíveis e, generosamente, deu espaço a outros gêneros musicais pernambucanos. “Nelson contribuiu para a divulgação de compositores como Antônio Maria, Aldemar Paiva, Luiz Bandeira, José Menezes. Ele também abriu espaço para a música folclórica e regional, focalizando cirandas, cantadores de coco, violeiros, repentistas, aboiadores, tornando mais importante o trabalho desses abnegados”, lembra Phaelante.

Em paralelo às suas atribuições, Nelson nunca deixou de compor. “Ele tinha uma facilidade enorme para isso, assim como Capiba”, pontua Angela Belfort. A relação entre os dois compositores de frevo mais famosos de Pernambuco é um ponto que ainda deixa margem a versões divergentes. No livro Nelson Ferreira, o dono da música, a biógrafa afirma que havia uma rivalidade cordial entre eles. Por sinal, os dois nunca fizeram parceria em nenhuma música. “Eles se tratavam muito bem, eram amigos”, afirma Luiz Carlos Ferreira, único filho de Nelson. Já o cantor Claudionor Germano, que gravou dezenas de músicas de ambos, apresenta outro ponto de vista. “Existia, sim, uma certa disputa entre eles. Um falava do outro e eu ficava no meio”.

Além de dar espaço a artistas locais, o compositor também usou as instalações da Rozenblit para escoar sua própria produção de frevos, fossem eles antigos ou novos. Foi justamente tendo Nelson Ferreira como diretor artístico da gravadora que a empresa emplacou seu maior sucesso em 1957: o frevo-de-bloco Evocação, posteriormente rebatizada com o nome de Evocação nº1 já que, estimulado pelo sucesso dessa música, compôs mais seis canções com a mesma temática. “Ele tinha saudade das canções entoadas pelos blocos carnavalescos dos anos 20, que mal conseguiam sobreviver nos anos 50. Foi esta a inspiração para a música. O compositor não achava que esse frevo-de-bloco ia vender, mas, ao vencer um concurso da Rádio Nacional, ele estourou no Brasil inteiro”, detalha Angela.

Nos últimos anos de vida, Nelson se preocupava com os destinos da música local. Ao se aposentar da Rádio Clube, em 1968, montou a Orquestra Nelson Ferreira, mas a concorrência com a música vinda do Sudeste, especialmente o samba, e a crise da Rozenblit, debilitada após sucessivas enchentes que danificaram suas instalações, não lhe eram favoráveis. Mesmo assim, se manteve ativo, compondo e à frente de sua orquestra até pouco tempo antes de falecer. Em 21 de dezembro de 1976, foi a vez de Nelson ser alvo de evocações e homenagens. No cortejo para seu enterro, compareceram mais de duas mil pessoas. Entre elas, Evocação nº 1, sua ode ao Recife e ao Carnaval.

DEPOIMENTOS:

MAESTRO EDSON RODRIGUES

"Ele realmente foi o dono da música. Ninguém gravava nada sem passar por ele. Eu era um ilustre desconhecido quando ele pôs meu frevo Duas épocas no disco Sua excelência, o frevo de rua, em 1965. Este foi o meu primeiro contato com Nelson. Era um cara muito jovem, uma pessoa com um humor espetacular. Quando Nelson morreu, fui chamado para liderar a Orquestra Nelson Ferreira, e eu entrei em contato com uma faceta desconhecida para mim: ele não sabia dizer não. Era legal demais e um defensor intransigente das coisas de Pernambuco. Ao tomar conta da orquestra dele, tinha o dever de seguir com sua bandeira. Ele lutou o bom combate. O frevo não vai morrer, mas lamentavelmente as rádios não tocam. Não se sabe o que não se ouve e, se não se ouve o frevo, ninguém vai saber o que ele é. Abrimos a guarda e tomaram conta do nosso Carnaval. É um crime de lesa-cultura que está acontecendo em Pernambuco".

CLAUDIONOR GERMANO

O cantor estabeleceu uma relação longeva com Nelson Ferreira. Em 1963, o artista gravou um LP de 78 rotações que se tornou o primeiro lançamento do selo Mocambo, da Fábrica de Discos Rozenblit, com o frevo-de-rua Come e dorme e o frevo-canção Boneca, composto por Aldemar Paiva e José Menezes. “Nelson colaborou comigo em 60 músicas. Frequentei muito a Rádio Clube quando Nelson Ferreira era diretor artístico e cheguei a ser crooner da orquestra liderada por ele. Lembro que ele ficava danado da vida porque eu não acompanhava o grupo nas viagens que a orquestra fazia, já que constituí família muito cedo e tinha de fazer trabalhos paralelos para me sustentar. Após uma premiação, foi ele quem me disse que eu deveria fazer carreira solo. Ele era delicado, humilde, se vestia muito bem e era festejado onde quer que passasse".

LUIS CARLOS FERREIRA, FILHO DE NELSON FERREIRA

O único filho de Nelson Ferreira, Luiz Carlos Ferreira, recebeu a reportagem em seu apartamento, no Bairro da Boa Vista. Este foi o imóvel onde o maestro passou seu último ano de vida, após ter sua casa desapropriada pela Prefeitura do Recife para o alargamento da Avenida Mário Melo, em Santo Amaro. No lugar exato do imóvel, foi criada uma praça em homenagem ao músico.

"Ele era uma pessoa que tinha uma inteligência muito forte e foi subindo gradativamente de posição social. Pessoas como ele fazem muita falta quando se vão. Ele veio do nada, mas era extremamente comunicativo, talentoso e, com isso, ganhou muitos amigos. Ele era muito bem-humorado, gostava muito de trocadilhos, mas, se ele não gostava de alguém, não tinha jeito de fazê-lo falar. Ele era muito rigoroso com a música e desagradava muita gente por causa disso. Meu pai sempre me educou bem e, o que é importante, sempre viveu de música. Sua contribuição para o frevo foi muito forte - suas músicas não morrem".

Fonte: Diario de Pernambuco, Recife, 17/01/2016


* Jornalista.

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