sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A tortura como método de esmagar a pessoa

* Por Urariano Mota


As notícias sobre o fascismo de Donald Trump chegam nestes dias. Ele fala em reabrir as prisões secretas da CIA no estrangeiro e a continuação do programa de interrogatórios que foi desmantelado em 2009. Palavras de Trump: “Falei com oficiais dos serviços secretos e perguntei-lhes: ‘Funciona? A tortura funciona?’ E eles responderam-me: ‘Sim, absolutamente!’ Sim, quero trazer de volta a tortura.

Quero manter o nosso país a salvo. Eu sempre obedeceria a lei, mas gostaria que a lei fosse expandida. Nós devemos usar algo mais forte do que temos agora. Hoje o waterboarding (afogamento simulado) não é permitido, até onde eu sei. Eu quero que, no mínimo, ele seja permitido”.

Mas alguma vez se justifica a tortura? Acompanhem por favor como se constroem as possibilidades "morais" que justificam o esmagamento de uma pessoa. O recurso da retórica lança hipóteses semelhantes a este encadeamento:
- Você é capaz de matar uma criança?
- Não, claro que não.
- E se a criança fosse uma terrorista?
- Crianças não são terroristas.
- E se ela estivesse domesticada, com lavagem cerebral, que a tornasse uma terrorista?
- Ainda assim, de modo algum eu a veria como uma terrorista.
- E se essa criança trouxesse o corpo cheio de bombas?
- Eu preferiria morrer a matá-la.
- E se essa criança, com o corpo de bombas, entrasse para explodir uma creche?
- Não sei.
- E se nessa creche estivessem os seus filhos e as pessoas que você ama?
- Bem, nesse caso...

E nesse caso a tortura estaria humanizada, se me perdoam o absurdo abuso do adjetivo. Para que não vejam nisso um exagero, citemos as palavras de Kenneth Roth, da Human Rights Watch: "Os defensores da tortura sempre citam o cenário da bomba-relógio. O problema é que tal situação é infinitamente elástica. Você começa aplicando a tortura em um suspeito de terrorismo, e logo a estará aplicando em um vizinho do provável terrorista".

Sobre um torturado e morto na ditadura, no meu romance “A mais longa duração da juventude”, pude narrar:

“O horror das mortes em 1973 é o retrato do seu último instante físico. Não é justo resumir uma vida humana assim. Sobre o animal sentimos a brutalidade: ‘O novilho continuava lutando. A cabeça ficou pelada e vermelha, com veias brancas, e se manteve na posição em que os açougueiros a deixaram.

A pele pendia dos dois lados. O novilho não parou de lutar. Depois, outro açougueiro o agarrou por uma pata, quebrou-a e cortou-a. A barriga e as pernas restantes ainda estremeciam. Cortaram também as patas restantes e as jogaram onde jogavam as patas dos novilhos de um dos proprietários. Depois arrastaram a rês para o guincho e lá a crucificaram; já não havia movimento’...

Penso em Vargas e seu sacrifício, o heroísmo que ninguém notou. Morto como mais um boi, gado abatido qualquer. Se não lhe comemos a carne, comemos a sua grandeza, porque o defecamos em nova brutalidade. Onde está Vargas, onde buscar Vargas? Ele está no ônibus, quando luta febril ao vislumbrar a sua última hora, da qual possui a certeza, e para ela caminha ainda assim? Desta maneira ele ficou adiante, conforme o viu a advogada Gardênia: ‘Vargas, que eu conhecia muito, estava também numa mesa, estava com uma zorba azul-clara, e tinha uma perfuração de bala na testa e outra no peito. E uma mancha profunda no pescoço, de um lado só, como se fosse corda, e com os olhos abertos e a língua fora da boca’. Vargas teria sido puxado por corda para o matadouro?

Aos bois partem o rabo, rompem a cartilagem, para assim ele arremeter para o lugar onde o sangram. A homens arrastam? Nos laudos da ditadura, não há uma narração da dor. Mentirosos, chegam a ocultar a causa mortis, esconder lesões, eufemizar a barbárie”.

Eufemismo da barbárie, assim como agora nas declarações de Trump. O terror de Estado está de volta.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros




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