A
tortura como método de esmagar a pessoa
* Por
Urariano Mota
As notícias sobre o
fascismo de Donald Trump chegam nestes dias. Ele fala em reabrir as prisões
secretas da CIA no estrangeiro e a continuação do programa de interrogatórios
que foi desmantelado em 2009. Palavras de Trump: “Falei com oficiais dos
serviços secretos e perguntei-lhes: ‘Funciona? A tortura funciona?’ E eles
responderam-me: ‘Sim, absolutamente!’ Sim, quero trazer de volta a tortura.
Quero manter o nosso
país a salvo. Eu sempre obedeceria a lei, mas gostaria que a lei fosse
expandida. Nós devemos usar algo mais forte do que temos agora. Hoje o
waterboarding (afogamento simulado) não é permitido, até onde eu sei. Eu quero
que, no mínimo, ele seja permitido”.
Mas alguma vez se
justifica a tortura? Acompanhem por favor como se constroem as possibilidades
"morais" que justificam o esmagamento de uma pessoa. O recurso da
retórica lança hipóteses semelhantes a este encadeamento:
- Você é capaz de
matar uma criança?
- Não, claro que não.
- E se a criança fosse
uma terrorista?
- Crianças não são
terroristas.
- E se ela estivesse
domesticada, com lavagem cerebral, que a tornasse uma terrorista?
- Ainda assim, de modo
algum eu a veria como uma terrorista.
- E se essa criança
trouxesse o corpo cheio de bombas?
- Eu preferiria morrer
a matá-la.
- E se essa criança,
com o corpo de bombas, entrasse para explodir uma creche?
- Não sei.
- E se nessa creche
estivessem os seus filhos e as pessoas que você ama?
- Bem, nesse caso...
E nesse caso a tortura
estaria humanizada, se me perdoam o absurdo abuso do adjetivo. Para que não
vejam nisso um exagero, citemos as palavras de Kenneth Roth, da Human Rights
Watch: "Os defensores da tortura sempre citam o cenário da bomba-relógio.
O problema é que tal situação é infinitamente elástica. Você começa aplicando a
tortura em um suspeito de terrorismo, e logo a estará aplicando em um vizinho
do provável terrorista".
Sobre um torturado e
morto na ditadura, no meu romance “A mais longa duração da juventude”, pude
narrar:
“O horror das mortes
em 1973 é o retrato do seu último instante físico. Não é justo resumir uma vida
humana assim. Sobre o animal sentimos a brutalidade: ‘O novilho continuava
lutando. A cabeça ficou pelada e vermelha, com veias brancas, e se manteve na
posição em que os açougueiros a deixaram.
A pele pendia dos dois
lados. O novilho não parou de lutar. Depois, outro açougueiro o agarrou por uma
pata, quebrou-a e cortou-a. A barriga e as pernas restantes ainda estremeciam.
Cortaram também as patas restantes e as jogaram onde jogavam as patas dos
novilhos de um dos proprietários. Depois arrastaram a rês para o guincho e lá a
crucificaram; já não havia movimento’...
Penso em Vargas e seu
sacrifício, o heroísmo que ninguém notou. Morto como mais um boi, gado abatido
qualquer. Se não lhe comemos a carne, comemos a sua grandeza, porque o
defecamos em nova brutalidade. Onde está Vargas, onde buscar Vargas? Ele está
no ônibus, quando luta febril ao vislumbrar a sua última hora, da qual possui a
certeza, e para ela caminha ainda assim? Desta maneira ele ficou adiante,
conforme o viu a advogada Gardênia: ‘Vargas, que eu conhecia muito, estava
também numa mesa, estava com uma zorba azul-clara, e tinha uma perfuração de
bala na testa e outra no peito. E uma mancha profunda no pescoço, de um lado
só, como se fosse corda, e com os olhos abertos e a língua fora da boca’.
Vargas teria sido puxado por corda para o matadouro?
Aos bois partem o
rabo, rompem a cartilagem, para assim ele arremeter para o lugar onde o
sangram. A homens arrastam? Nos laudos da ditadura, não há uma narração da dor.
Mentirosos, chegam a ocultar a causa mortis, esconder lesões, eufemizar a barbárie”.
Eufemismo da barbárie,
assim como agora nas declarações de Trump. O terror de Estado está de volta.
*
Escritor, jornalista, colaborador do
Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha.
Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife”
e “A mais longa juventude”. Tem inédito
“O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Lá e cá a direita se instala.
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