Raduan Nassar x roberto freire
* Por
Urariano Mota
Sinto não poder ainda
escrever com o devido distanciamento. Tentei até passar mais tempo sem falar,
pois esperava que o fragor da onda se perdesse no horizonte. Mas não devo mais,
sob pena de omissão. Entendam por favor a urgência e descontem as mal traçadas
que vêm a seguir.
Na solenidade da
entrega do Prêmio Camões a Raduan Nassar, quase toda imprensa brasileira
preferiu esquecer a beleza do discurso do escritor. Aqui, houve uma inversão. Pelo noticiário,
mais importante que o Prêmio Camões foi a baixeza, tratada como resposta, do ministro da cultura. No Jornal da Cultura
(essa palavra tão destruída no Brasil de hoje) um comentarista chegou a lembrar
o passado do ministro como de um homem de esquerda, e portanto isento defensor
do novo governo: "ele vem do PC do B". Santa ignorância, total e
absoluta, porque o comentarista desconhecia por completo o que houve com o
movimento comunista no Brasil. O ministro da cultura destruída veio do PCB, de
onde saiu para o PPS, a versão mais infame do que pode ser um partido com
tintas de ex-revolucionário.
O ministro foi à
cerimônia de um prêmio consagrador para um escritor brasileiro, mas não sabia o
que era o prêmio nem muito menos quem era o premiado. Ou seja, foi como um
cavalo da cultura. Mas quem é mesmo roberto freire? – Esse ministro da cultura
de cascos é um indivíduo que desprezou sua história e natureza em vários
tropeços, que ele deve chamar de oportunidades. No primeiro deles, renegou o
passado comunista. No segundo, renegou o próprio estado de nascimento,
Pernambuco, porque o jogou ao lixo para melhor viver sob o abrigo dos tucanos
em São Paulo. Trair e trair para ele é um método de sobrevivência. Em um perfil
esclarecedor, Altamiro Borges já o traçou nestas linhas: “Um político menor,
rancoroso, que criou um partido para ser mera sublegenda do PSDB...”. Em
Pernambuco, quando voltou para o enterro de Miguel Arraes, muitos o chamaram de
Traíra. Cínico, olhou de lado e sorriu.
É que para os seus ouvidos a palavra Traíra passou a soar como um
elogio.
Em dezembro de 2016,
foi aclamado pelos gritos de “golpista, golpista” em plena cerimônia do palácio
do governo de Pernambuco. E quanto mais tentava levantar a voz para vencer o
clamor, mais recebia a graça de sonoras vaias. É claro, ele bem adoraria
receber o tratamento de Sua ou Vossa Graça, assim como os secretários e cardeais do Rei
Henrique VIII na Inglaterra dos Tudors, personagens a que pela indignidade
roberto freire se assemelha. Mas recebe a graça de vaias.
Adiante, porque sobre
Raduan Nassar devo falar. Na urgência desta hora, não vou escrever sobre a
ótima escrita de Raduan Nassar. Fica para outra oportunidade. Agora, posso
falar sobre a sua pessoa.
Conheci Raduan Nassar
em 1977. Nesse ano, quando desci os pés em São Paulo, tive a sorte de conseguir
trabalho no Jornal da Semana. Ali cheguei por força da literatura, ou melhor,
por força da necessidade de comer, embora transportado pela literatura.
Desempregado, sem carteira profissional, fui a
um congresso de escritores no Hotel San Rafael à procura de Astolfo Araújo,
minha única referência paulista. Astolfo havia publicado um conto meu na
revista Escrita, e esse era o meu passaporte para sobreviver. Pergunto a uma
pessoa, que depois descobri ser o escritor Moacir Scliar:
- Você conhece Astolfo
Araújo?
- Não. Mas pergunte
àquele cidadão ali, por favor. Ele conhece Astolfo.
E fui até o cidadão,
Raduan Nassar, que também eu não sabia. Nem ele o meu conto, pelo visto.
Pergunto:
- Você conhece Astolfo
Araújo? Tem o telefone dele?
Poderia ter
acrescentado, à maneira de Groucho Marx: responda a segunda pergunta primeiro.
Mas fiquei quieto, e o cidadão me respondeu:
- Sim, é meu amigo.
Anote por favor.
Então no mesmo dia
ligo para Astolfo Araújo, de um telefone público. Peço-lhe um emprego, um
trabalho em jornal, qualquer coisa. E Astolfo:
- Aquele com quem você
falou é Raduan Nassar. Ele é o editor do maior jornal de bairro da América do
Sul. Vá lá em Pinheiros e fale com ele. É ótima pessoa.
Naquela ocasião, eu
não sabia, e o leitor perdoe a repetição de “eu não sabia”, porque grande era a
minha inocência: Raduan Nassar, o editor, escritor, já havia publicado Lavoura
Arcaica. Mas logo soube disto: ele me deu tarefas para escrever no jornal. Na
época, a minha reportagem remunerada consistia em escrever crônicas como
freelancer, e nada mais. A família de Raduan,
eu não sabia mais uma vez, era dona da cadeia de supermercados Bazar 13,
a segunda maior cadeia de supermercados de São Paulo. Como eu podia adivinhar
que fosse rico um colega de literatura, que me chamava pra tomar um cafezinho,
enquanto passávamos horas a conversar sobre Graciliano Ramos? Na minha
percepção, e até hoje, os escritores são uns fodidos em geral. O certo, isto eu
soube, é que pelos textos o jornal até pagava bem. Mas, diabo, as minhas 20
linhas semanais não chegavam para as despesas. Talvez não valessem nem o pouco
chumbo impresso.
Pesquiso entre papéis
guardados e desentranho um pequeno texto que publiquei no jornal de Raduan, em
23 de outubro de 1977:
“Deus inca assaz
falado
O que o cidadão espera
de um bar que tem o nome de ‘Latinoamericano’? Toureiros de Espanha em terras
do México, Sarita Montiel cantando ‘La violetera’, a felliniana Mamãe Dolores
aos prantos secundada por Parra de mosquetão, com duplas de mexicanos de
sombreros a passear pelas mesas chacoalhando ‘que bonitos ojos tienes’, um
indivíduo pisando una señorita em arrojado tango, um índio com poncho a mascar
com os olhitos apertados nos Andes? Pois se de Latin American o cidadão só
entende os prospectos distribuídos em agências de viagem, não vá a este bar que
tomará tremendo susto: ao pé da escada, na Henrique Schaumann (quase esquina da
Avenida Rebouças), encontrará um deus inca pintado na parede, segurando, à
altura do queixo, aquilo que o eufemismo recomenda dizer, um vigoroso falo.
Falemos, em termos: o
senhor reverencia o deus-poder, sobe a escada, e adentra um ambiente cujo toque
é a calma, o recolhimento, o bar, doce bar - atributos que, naturalmente,
custam alguns trocados, que pesariam para um obrero, o que não deve ser o seu
caso. Em um recanto em que a quase penumbra convida à paz (tão difícil, lá
fora), o senhor senta-se, pois este bar não é um daqueles infernais botecos em
que a gente se embriaga de pé, até cair; senta-se e degusta, ao sabor do acaso,
un tequila, un pisco, un don ramón, ou un negroni latino, que certamente lhe
acenderá as ventas, mas será contido, amaciado pela suave música que vem dos
trópicos, nas ondas doces das vozes dos grupos folclóricos del Paraguay, del
Chile, del Perú ... encastoadas em gentis fitas de um gravador que rumoreja e
faz o ambiente. Das 19 e 30 ao último cliente, a depender do cliente,
evidentemente. Falou?".
É claro, com produção
tão vasta assim ninguém podia mesmo viver. A não ser que cada linha valesse uma
feira no Bazar 13. O mais importante é que lembro de nas conversas literárias,
nas discussões, Raduan Nassar nunca fez proclamação de ideias socialistas ou de
intervenções mais arrojadas na realidade. Ele não me conhecia. Mas já então ele
dava contribuições importantes contra a ditadura brasileira. Quase ninguém sabe
até hoje, mas na gráfica de Raduan era impresso o jornal Movimento, um dos
melhores jornais da resistência democrática. Ele corria riscos pela façanha,
ainda que cobrasse pelo serviço.
E vamos ao fim. Retomo
agora e ligo as duas pontas da ligação entre Raduan Nassar e roberto
freire. Já observei num romance:
Muitas vezes, a vida é
prolongada numa dilatação desonrosa. Como se ela fosse cordas tensas de um
violão que se romperam e foram emendadas, cujo som emitido não é mais música. O
destino, muitas vezes, parece dar uma segunda chance às pessoas mudando o
transbordamento em pântano. A torrente que não mais é, estagna, vira lama.
Compreendê-las nesta segunda fase é o mesmo que um “analise esta sombra".
À observação do
romance, acrescento neste 2017: há outras pessoas que, na mais idosa
existência, transformam a vida num canto de liberdade. Assim foi com o maior
russo Tosltói, que na idade avançada escreveu contos, romances da mais
extraordinária humanidade, e transportou a literatura para o mundo real, pois
só queria se desfazer do fardo das terras, cuja propriedade era uma injustiça
secular. Raduan Nassar segue o modelo desse gênio russo. Doa fazenda de 643
hectares férteis para a universidade, age, fala pela maioria dos brasileiros no
momento em que se esperava a literatura como o sorriso da sociedade. Em resumo, ele se faz melhor onde outros
declinam, na altura de seus 81 anos. Parabéns pelo Prêmio Camões, Raduan
Nassar. A premiação, a honra e a tribuna são suas. O resto é silêncio.
Publicado no lusófono
Jornal Tornado http://www.jornaltornado.pt/colera-do-escritor-fazendeiro/
*
Escritor, jornalista, colaborador do
Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha.
Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife”
e “A mais longa juventude”. Tem inédito
“O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Entre outras qualidades, quanta dignidade!
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