sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Mauá


* Por Alberto de Faria


Não coube a Mauá a consagração pronta de uma apoteose, como ao Imperador e a Caxias.

Caxias desaparecera em pleno fastígio; morrera, onde sempre estivera, muito alto. D. Pedro II morreria no exílio, maior do que no trono, em um teatro universal. “Pela primeira vez se apresentam aos olhos da Europa conduzindo os funerais da realeza, a ciência e as letras... Paris viu desfilar este préstito, pode-se dizer, com essa espécie de emoção impessoal, uma grande página da história, quase uma forma de arte... A glorificação mesma era de tal ordem, que é triste, que substituía no pensamento de todos a ideia de morte, que é triste, pela da imortalidade, que é radiante.” (Joaquim Nabuco, Escritos)

Mauá finou-se aos poucos, burguesmente, num leito de prolongados sofrimentos. Sua tragédia, - o dia de sua falência, uma crise violenta no Brasil, estava quase esquecida, com quinze anos de intervalo; sua figura nacional reduzida à de um homem que fora importante, que fora rico e que trabalhava ainda como corretor, quando a doença o permitia, para ganhar o pão dos seus e para preencher o pequeno déficit de que em contas finais seus credores tinham aberto mão, dando-lhe quitação que só aceitou com a reserva de ir buscar no trabalho o pouco que faltou na moeda de liquidação.

O dia de sua morte não foi o da queda de um herói; foi o da morte de um monge. Não fez ruído; passou apenas pelo noticiário respeitoso e comovido dos jornais.

Isso não impede que a História o ressuscite nos seus dias de glória e de grandes serviços à pátria.

Na formação da nossa unidade política, há fatores primordiais que nenhum sociólogo deixará de assinalar como marcos culminantes da consolidação da nacionalidade.

Externamente, a guerra contra Rosas e Oribe, levantando o moral abatido pelo desastre da campanha cisplatina, e a preponderância política do Rio da Prata com a Tríplice Aliança e a vitória no Paraguai.

Internamente, além da força da autoridade, que a clarividência, a nobreza d’alma, o desprendimento de D. Pedro II e o prestígio de Caxias firmaram definitivamente, a abertura das comunicações aproximando comercialmente os elementos dispersos da colonização portuguesa. Nos extremos do país, estavam os dois germes mais sérios do desagregamento - o Amazonas, cobiçado por muitos, aberto a todos, como um mar sem praias e o Rio Grande do Sul, sempre perturbado politicamente, um novo Uruguai, uma perigosa fronteira, de entrada fácil, como pareceu a Lopes.

Aludindo aos frágeis laços de solidariedade que ligavam as antigas capitanias, escreve Euclides da Cunha – “Punha-se de manifesto um corolário único, a formação de algumas repúblicas turbulentas, sem a afinidade fortalecedora de uma tradição secular e profunda”. Esse perigo, o acontecimento da Independência sob o regime monárquico, diminuía ou adiava, mas não podia eliminar. Subsistia no espírito dos estadistas a preocupação do perigo separatista. Feijó, nas cláusulas para aceitar a Regência, prevê a hipótese da secessão. O atilado estadista, compreendendo, como escreve Euclides, que “... os tumultos federalistas exigiam operação mais séria do que as cargas de baionetas...”, cuidou logo do problema de unir pelo comércio, pelos interesses materiais., O decreto de 31 de outubro de 1835, a primeira preocupação da sua Regência, eleva-o mais que todos os atos de valentia. “Ao grande homem ficou a glória de haver adivinhado o antagonismo formidável do deserto das distâncias... o crescente desequilíbrio entre os homens do sertão e do litoral...”,  “...porque o raio civilizador refrangia na costa...” (À margem da História)

A ligação da Corte, por estradas de ferro, com as capitais de Rio Grande, Minas e Bahia, esse primeiro decreto de Feijó (1835) é a visão do problema; não era, porém, a solução, porque vinha extemporânea. Apenas cinco anos antes, a Inglaterra conhecera sua primeira linha férrea regular, de poucos quilômetros de extensão, e ainda três anos depois, no parlamento francês, o parecer de homens notáveis como Thiers, Berrer, Arago, Remusat. Duvergier de Haurrarre, Odilon, Barrot, condenavam a ideia da construção da linha Paris-Bruxelas e a fusão das pequenas linhas regionais existentes. Coube a Mauá lançar a ideia no momento oportuno e executá-la; foi sempre o seu mérito principal - o contato com a realidade. Para isso, sem posição oficial tinha, nem pediu favores; com o seu dinheiro e de alguns amigos lançou a ideia no solo e ela enraizou. Daí por diante, nos vinte anos de seu esplendor financeiro, nunca mais uma estrada de trilhos se havia de cravar na terra brasileira sem que o seu nome ou a sua influência aí estivesse; e elas brotaram fecundamente de 1854 a 1858.

É curiosa a ingratidão dos nossos mais ilustres historiadores, esquecendo ou pondo em plano secundário a influência de Mauá em todos esses problemas nacionais. Quando atribuem a glória a este ou aquele estadista, ao qual a posição política ofereceu a oportunidade de uma boa solução, esquecem o nome do executor, do realizador insubstituível, glória que, veremos, foram estes os primeiros a querer sempre dividir com Mauá; e, não raro, esquecem de todo o realizador, que é, muitas vezes, aliás, também autor.

Se Mauá tivesse sido o simples executor, ainda não teria explicação este menosprezo. Entretanto, ele não foi só o braço realizador, foi o precursor, foi a ideia, foi o executor no momento oportuno e foi, em repetidas vezes, até o capital que faz as obras.

Mostraremos, no correr deste trabalho, que não lhe regatearam louros esses homens públicos que os historiadores apontam como fatores capitais da formação da nossa nacionalidade.

Na política internacional do Sul, ele é o ousado interventor de 1851. Se foi o autor primitivo da ideia, se foi um auxiliar do Imperador e do Visconde do Uruguai, é ponto a discutir; mas, que na ação foi a grande figura, a alma, são os Paulino de Sousa (Uruguai), os Rodrigues Torres (Itaboraí), que reconhecem, fazendo-o assinar os adiantamentos de dinheiro do Tesouro, e permitindo que, com seus recursos e com a sua própria pessoa fosse correr no Prata os riscos da política inaugurada.

Que daí em diante se tornou plenipotenciário permanente do Brasil, bastará ouvir agora o ex-presidente da República do Uruguai, Dr. Cláudio Williman: - “O Banco Mauá foi a mais poderosa agência diplomática do Império, capaz de influir sobre os destinos da nacionalidade oriental.”

Na política interna, o ato que faz o ponto culminante de um largo período de progresso, cimentando a obra de paz interna do Imperador e de Caxias, é sem dúvida a Conciliação, o intervalo em que a capacidade política de Paraná pôs seu enorme prestígio ao serviço do banimento de lutas, com a constituição do bloco que reuniu e uniu os partidos e os chefes de grupos, Mauá industrial, banqueiro, e grande força extrapolítica, era amigo íntimo do Presidente do Conselho, e foi, na medida das suas possibilidades, que já eram consideráveis, colaborador proeminente da Conciliação. Paraná morreu subitamente em setembro de 1856. “... O estrondo, o espanto deste acontecimento foi imenso em todo o país, a situação ficava sem chefe, a política dominante sem apoio, a oposição sem um braço forte para garanti-la e, sendo preciso, para favorecê-la.” (Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, I, 395). Mas, já nesse momento, Mauá, braço forte de Paraná, era candidato a deputado pelo Rio Grande do Sul, por onde foi eleito dois ou três meses depois nas eleições gerais; e por essa porta ingressou na política como deputado da Conciliação e amigo pessoal do falecido presidente do Conselho.

Sob outro aspecto, o do efeito que na integração indispensável dos elementos do antigo domínio português, interessado em dividir para reinar, com capitanias que só tinham de comum serem de donatários portugueses, a solução política das vias de comunicação, a ação de Mauá não se poderá afirmar apenas que foi grande, porque a fórmula verdadeira é outra - esta é a obra de Mauá.

(Mauá, 1926)


*  Jornalista, professor, crítico, folclorista e historiador, membro da Academia Brasileira de Letras.

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