domingo, 26 de fevereiro de 2017

Olha o índio aí, gente!

* Por José Ribamar Bessa Freire


"Sangra o coração do meu Brasil.
 O belo monstro rouba as terras dos seus filhos
 devora a mata e seca os rios".  (Samba da Imperatriz Leopoldinense , 2017)


Tem um Brasil que está morrendo e outro que está nascendo dentro de um país de cores e cantos tão diversos. Para identificá-los, não precisa ser médico-legista nem parteira. Basta observar neste carnaval o desfile na Sapucaí, mas com os olhos bem abertos para não confundir um com o outro, já que nenhum dos dois tem samba no pé. Um deles arrasta os pés, mancando, porque, decrépito, está com esclerose múltipla, enquanto o outro, hesitante e trôpego, está aprendendo a andar e ensaia no sambódromo seus primeiros passos. Só pode ver a diferença quem, entendendo a língua dos pássaros, das árvores e dos rios, é capaz de decifrar seus gemidos.

Berço do renascimento

O Brasil com um pé dentro do caixão fez tudo para abortar o parto do Brasil com um pé fora do berço. Em vão. Domingo (26), logo depois da meia-noite, cerca de 3.000 componentes da Imperatriz Leopoldinense, entre eles Raoni e outros índios, desfilam em 32 alas e seis carros alegóricos com a rainha de bateria, Cris Vianna, e mestre Lolo no comando da percussão. "Xingu, o clamor da floresta" canta aquilo que foi explorado na Rio-92 por Daniel Matenho Cabixi, um intelectual Pareci, com a palestra "As tecnologias dos povos indígenas na preservação do meio ambiente" publicada pela UERJ.

O enredo celebra os saberes das etnias que vivem no Parque Indígena do Xingu (MT) e a contribuição das civilizações indígenas - "a primeira semente da alma brasileira" - na defesa da natureza agredida, da beleza e exuberância de cores da floresta e de rios limpos e piscosos. Exalta as pinturas corporais, o artesanato, os instrumentos musicais - as flautas e os maracás, a liberdade e a memória sagrada. Dá visibilidade aos índios, fazendo aquilo que a escola, que não é de samba, devia fazer, mas raramente faz. A letra do samba-enredo já foi tema de aulas no Colégio Faria Brito, Zona Oeste do Rio e no Colégio-Curso Martins, em Vila Isabel, Zona Norte, contribuindo para a implementação da Lei 11.645 que torna obrigatória a temática indígena em sala de aula. "Salve o verde do Xingu, a esperança, a semente do amanhã!".

Esse Brasil que nasce e que está aprendendo a ficar de pé inaugura o diálogo do carnaval com a academia e com os índios, quase sempre discriminados como atrasados ou então folclorizados como exóticos. Da Antropologia, a escola de samba toma emprestado o trabalho de campo como forma de entender o outro, o diferente. Busca na Museologia a curadoria compartilhada com os índios na organização de exposições. Recorre à História para abordar acontecimentos com o conceito de longa duração de Fernand Braudel, abandonando o fatual, nomes de heróis fajutos e sucessão de datas inúteis.

Foi assim que, assessorado pelo antropólogo Carlos Fausto do Museu Nacional (UFRJ), o carnavalesco Cahê Rodrigues se deslocou ao Xingu onde conviveu com os índios, observou o cotidiano e com eles concebeu o enredo. Viu a área contaminada por agrotóxico, causador de câncer que já matou muitos índios. Viu os rios secando e a mata morrendo.  "Voltei de lá com outra cabeça" - disse em entrevista. Viajou para lá com a mente do general Custer e retornou pensando como Touro Sentado, a exemplo do ministro Ayres Brito, do STF, no processo da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Deixou-se educar pelos índios, os maiores especialistas em educação ambiental.

Escola sem partido

O enredo, dividido em seis setores, começa com o sagrado, passa pelas riquezas da flora e da fauna e aborda a invasão e o roubo de terras. Depois mostra as queimadas, as madeireiras, o agrotóxico e Belo Monte. As alianças de índios com não índios na defesa do Xingu é o quinto carro, o último é o clamor que vem da floresta. Isso foi suficiente para que o outro Brasil com o pé no caixão, passasse a agredir a Imperatriz Leopoldinense e incorporasse as escolas de samba no conceito de "escolas sem partido", que querem nos impor. Mesquinhos, não admitem versão crítica, nem no carnaval. Querem ter o monopólio da narrativa histórica por acreditarem que isso favorece a expansão da soja, do pasto para boi e a ocupação de terras indígenas por ruralistas.

Na última década, em carnavais anteriores, vários desfiles exaltaram a expansão do agronegócio, financiados pelos ruralistas preocupados em limpar a barra diante da opinião pública. A então presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), senadora Kátia Abreu, desfilou em uma delas, a Mocidade Independente de Padre Miguel que saiu, em 2011, com o enredo "Parábolas dos divinos semeadores", financiada por empresas de fertilizantes.
  
O senador Ronaldo Caiado (DEM-GO, vixe vixe), figura sinistra do "divino semeador", propõe uma CPI "para discutir, debater e descobrir os financiadores da Imperatriz Leopoldinense". A Associação Brasileira de Criadores de Zebu (ABCZ) em carta atacou a escola de samba. Lideranças ligadas ao plantio de soja, milho, algodão e cana de açúcar se pronunciaram, alegando que o agronegócio é responsável pela comida e bebida consumida por turistas no carnaval.  Circulou até mesmo denúncia, não confirmada, em matéria assinada por João Paulo Saconi, de que empresários teriam oferecido R$ 15 milhões aos índios para que não desfilassem.

A escalada de violência culminou com o programa "Sucesso do Campo" da Rede Goiás, afiliada da Record, quando a jornalista Fabélia Oliveira, comentando o samba-enredo da Imperatriz, naturalizou as mortes dos índios, declarando que o índio "vai ter mesmo que morrer de malária, de tétano, de parto . É a natureza". Estranha concepção da natureza aliada à morte. Para desqualificar o enredo, ela ajumentou que "o tradicional malandro carioca" não tem autoridade para falar do índio e da floresta.

Dinossauros em extinção

O carnavalesco Cahê Rodrigues ficou assustado:
- Eles insistem em agredir a todo instante, com algumas colocações preconceituosas e racistas. Além de ofensas à escola, eles diminuem a imagem do índio, como se o índio não fosse nada. O índio não tem voz. Todas as vezes que ele quer falar, é calado. O tema foi desenvolvido nas histórias de conquistas e de lutas dos índios do Xingu. 

Os dinossauros são ricos, arrogantes e têm poder, nem parece que estão com o pé na cova.. Lembrei, porém, de uma charge publicada há anos na capa de uma revista francesa, que para ser didática comete uma impropriedade histórica, confundido temporalidades. Mostra um gigantesco dinossauro que vigiava uma caverna, onde dois seres humanos, pequenos e frágeis, tremiam de medo. Um deles falou assim para o outro: “Por incrível que pareça, esse monstrengo aí fora, grande e forte, está condenado a desaparecer. E nós, seres humanos, pequenos e desprotegidos, vamos nos perpetuar". Historicamente, numa perspectiva de longa duração, a classe que emprega agrotóxicos vai se extinguir como os dinossauros.

O Brasil que está nascendo é aquele que, na perspectiva do antropólogo Darell Posey, leva a sério o conhecimento dos índios, incorporando-o à ciência moderna e aos programas de pesquisa e desenvolvimento, que valoriza os índios pelo que são: "povos engenhosos, inteligentes e práticos que sobreviveram com sucesso por milhares de anos na Amazônia". Tal postura, cria uma ponte ideológica entre culturas, que permite "a participação dos povos indígenas, com o respeito e a estima que merecem, na construção de um Brasil moderno".

É essa ponte que a Imperatriz Leopoldinense está ajudando a construir. Se o Brasil que morre está tão incomodado, é porque teme que o Brasil que renasce dê uma grande aula na Sapucaí, construindo outra narrativa na passarela mágica e dionisíaca do carnaval, o único espaço no Brasil em que utopia dá certo. Darcy Ribeiro, o criador do Sambódromo, Berta Ribeiro, Maria Yedda Linhares, John Monteiro, Antônio Brand e tantos outros amigos dos índios devem estar requebrando alegremente na tumba ao som do samba da Imperatriz. Olha o índio aí, gente.

P.S. - Convém se concentrar nos pequenos atos e gestos cotidianos do novo Brasil que está renascendo, traz esperança e não nos deixa adoecer diante do quadro político. Foi o caso da defesa de três dissertações no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO: 1) na segunda (20) Ignacio Gomeza Gomez - "Em busca da memória e da identidade: o povo Charrua no Uruguai e Brasil" (Banca: João Pacheco de Oliveira, Amir Geiger e José R. Bessa (orientador); 2) na terça (21), Renata Póvoa Curado - "Memórias tradicionais como performances culturais: experiências na Aldeia Indígena Multiétnica em Goiás" (Banca: Luisa Belaunde, Zeca Ligiéro e José R. Bessa (orientador); 3) Mariane do Nascimento Vieira - "Narrativa dos Ameríndios: disseminação de uma visão do contemporâneo" (Banca: Amir Geiger (orientador), Thiago Loureiro e José R. Bessa.

* Jornalista e historiador.


Nenhum comentário:

Postar um comentário