domingo, 12 de fevereiro de 2017

Esmeralda, como um milagre, se multiplicou



* Por Eduardo Murta


Foi feito rastilho de pólvora que a notícia correu. Num lugarejo em que salgar a língua para maldizer velhos conhecidos e saudá-los na esquina seguinte com um aceno de chapéu era tradição que já criara lodo. Dondinha foi a primeira a assoprar a novidade. Ficou ali, arranchada à janelinha, as bordas azuis em madeira emoldurando o rosto, até que surgisse uma comadre de confiança.

Vigiou se reinavam sozinhas. Bateu a mão em gestos repetidos, jeito quase escondido, fechando em cunha. Sussurrou o nome da vizinha. Queria chamar a atenção não. Daí ter feito com a discrição dos que estão na fronteira do segredo a ser revelado. Foi ao ouvido esquerdo de Lia, afastou a mecha de cabelo, e contou, fio a fio, os detalhes. Falava e colocava mira nos olhos de quem não punha fé num ponto da história. Mas à confidente comovia a escolha para ser guarda do que ninguém ainda sabia. Saiu com voto de silêncio sagrado.

A amiga dormiu saboreando a cumplicidade agora dividida. E sentiu como mastigasse uma pedra no arroz ao ouvir o falatório na fila do pão: a galinha do compadre Dedé botara um ovo dourado. Gelou. Era assunto na porta do açougue, na loja de armarinhos, no resguardo dos doentes do lugar. Chegou como vento de quatro costados também à Barra do Onça, à Mata da Cauã, às comunidades negras do Cardoso. Aportou nas cercanias do Lamarão.

Dondinha invocou o valha-me Deus, praguejou a tentação do fuxico, bateu três vezes à boca. Mas tarde já era fazia tempo. Rumou dali, a bisnaguinha de trigo temperando no suor do braço, para a chácara de Dedé. Espalmou a mão aos lábios, ao espanto. Viu gente de todas as bandas. Legião de famintos, meninos cegos, velhinhos desenganados. Até o povaréu com as latas vazias à cabeça, em busca de água. Inquiriu a presença a um sanfoneiro, os dedos trêmulos apoiados às teclas. Era mal que médico algum identificara. Estava lá por um milagre. Milagre?!?!

O compadre não a perdoaria. Qual nada. Fazia era comemorar. Celebrar a chegada de deserdados que ainda tinham força para crer, inda que numa miragem qualquer. Recebeu, deu de beber, distribuiu bandejas de frutas. Cuias de farinha. Assistiu a disputas de tapas. E abriu a casa para que vissem, tocassem. Quem quis, até beijou. A galinha Esmeralda sem entender um só significado daquilo tudo. Os olhinhos miúdos vigiando. Engrossava o cacarejo quando se aproximavam do ovo, tangia o pescoço, alastrava a asa. Acabava cedendo à curiosidade intrusa.

E o acontecimento ganhava novas leituras. Já viam além do dourado. Descobririam uma nuance de arco-íris. Números que virariam aposta em jogo-de-bicho. Os traços de uma face a que atribuíam divindades. Os febris, então, tomavam o rumo do casarão. Ali se encontravam com os de amores partidos, os que haviam sangrado os negócios, os que pediam pela chuva para a lavourinha de milho. E Dedé acompanhando os movimentos, juntando impressões. Se perguntando se já não era hora de apartar o espetáculo. Medo de que as coisas fugissem ao controle.

Decidiu ao menos pôr freio na visitação. Encurtou os horários, restringiu a oferta de alimentos, que andavam rareando na dispensa. Fechou a janela que dava de frente para a rua. E encostou o portão que levava ao quintal. Desautorizou a formação de filas lagarteando as paredes da vizinhança. Acabou limitando a cinco por dia as entradas de visitantes. E, nas andanças pelo lugar, fez ouvidos moucos à menção de que tudo não passava de um joguete com a boa fé alheia.

Em casa, à mesa, variou até que o café esfriasse à caneca. Buscava respostas. Já pensava no pijama listrado quando soou a campainha. Mirou da fresta. Uma menininha, não mais que 13 anos, pernas secas, pezinhos descalços. Palito de fazer dó. Trazia um bebê. Magro, que os braços se confundiam com os dedos. No encontro do olhar acastanhado, Dedé vislumbrou a precisão. Emudeceu à pergunta sobre a ave dada aos milagres. Pediu que se sentasse apenas. Juntou fôlego. Foi em direção à galinha.

Curvou-se. E beijou-lhe a cabeça como em despedidas a netos do coração. Ele mira agora mãe e filho se servindo da canja, a gema boiando à borda, as bocas num escorrendo amarelado, na pressa da fome. Separou as penas, lhes dedicará espaço no travesseiro. Ele toma uma delas às mãos e, delicado, acaricia os pés do menino. É daquele sorriso, como a um milagre, que pede todas as noites em suas orações para que morra lembrando.



* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.






Nenhum comentário:

Postar um comentário