sábado, 18 de fevereiro de 2017

José Lins do Rego


* Por Elmano Cardim


Discurso pela Academia Brasileira de Letras, em 12 de setembro de 1957.


Na ausência do nosso presidente, Sr. Peregrino Júnior, cabe-me como secretário-geral o doloroso dever de trazer a José Lins do Rêgo o adeus da Academia Brasileira de Letras, ocasional representante dos confrades que aqui se reúnem em torno de seu féretro e dos que, de longe, têm o pensamento voltado para o que tão prematuramente a morte arrebatou do nosso seio.

Temos a desdita de ver encerrar-se um convívio encantador que mal começara. Apenas aqui chegado, no deslumbramento de uma conquista natural, parte o grande escritor, deixando-nos a amargura de uma perda cuja imensidade avaliamos pelo sulco profundo aberto na nossa saudade. E que a nós outros muito mais seduzira ele pela doçura do seu coração do que pela grandeza da sua obra. E se a esta consagramos, no reconhecimento de um mérito que o consenso da inteligência brasileira tornara indiscutível, muito mais nos alegramos ao encontrar na bonomia e na dádiva de sua amizade a revelação de inigualável tesouro humano de ternura e generosidade.

Choramos, por isso, nesta hora triste muito mais o amigo do que o confrade, sentimos muito mais forte o vácuo do seu desaparecimento, sabendo cruelmente terminada uma convivência de que tão pouco desfrutamos. Essa a parte mais crucificante do nosso sentimento de pesar, ao ver inerte, a caminho da eternidade, aquele que hoje desapareceu tornando mais viva a perenidade da sua lembrança nas letras brasileiras. Porque aí, no panteão dos grandes escritores pátrios, o seu lugar de há muito estava marcado pela auréola que nimbava o seu nome glorioso.

A imortalidade que aqui se convencionou já a houvera José Lins do Rêgo conquistado sem esforço, pela repercussão de sua obra, pelo julgamento nacional que elegeu sem discrepância como um dos valores definitivos da literatura brasileira.

Esse veredicto de consagração não resultou somente de haver sido esse escritor dotado de brilhante inteligência e forte poder imaginativo. Sua obra se assinala, na história das nossas letras, porque ao lado de sua expressão de arte criadora logrou plantar um marco de luz num ciclo de evolução nacional. Foi José Lins do Rêgo o romancista original e inigualável desse momento que ficou para trás, mas que se perpetuará na compreensão dos pósteros pela pujança de sua pena e pela interpretação do seu espírito, e se isso realizou, com maior relevo do que outros que o antecederam ou seguiram, é que sua inspiração brotou pura dos arcanos do seu coração generoso e soube ele dar aos seus enredos e emprestar aos seus personagens a substância humana da sua formação e as reservas inesgotáveis da grandeza de sua alma.

Na reprodução de uma paisagem peculiar da vida brasileira, tão cheia de rudeza e sofrimento, foi José Lins do Rêgo um pintor excelso do realismo, com as cores fortes dos contrastes chocantes, mas com o poder supremo de amenizar o brutal pelas tonalidades suaves da arte com que soube diluir o traço amargo das injustiças sociais e das maldades humanas.

É que a sua pena não a usou como um látego, mas como um sudário de edificação para despertar os bons e corrigir os maus.

Não é de estranhar, pois, que sua obra, de limite regional, de acre sabor nordestino, se tenha ampliado na universalidade da sua projeção e o seu nome corra hoje impresso em várias línguas, ao lado dos grandes escritores que transcendem das fronteiras nacionais para o cenário da admiração e do respeito mundiais, no culto eterno às criações privilegiadas do espírito.

Das esferas originais da ficção, onde se alçou a uma altura sem par, sua alma se evadiu para a comunhão diária com os leitores, na constância de um colóquio cotidiano, que trazia o escritor presente aos acontecimentos corriqueiros da vida ou aos instantes de emoção que surpreendia no tumulto da cidade. Foi pelo prazer de despersonalizar-se para melhor se identificar com a multidão, que o escritor se fez um entusiasta do esporte, para vibrar na emoção das pelejas que acompanhava com alma de menino.

Assim não o choram hoje apenas a cultura e as letras brasileiras que ele tanto enobreceu, mas também o número infinito e anônimo dos que o sabiam sem igual na fidelidade às cores do clube que tinha no coração. Por isso vimos esta cidade imensa, dias e dias angustiada a acompanhar desolada o curso da moléstia cruel que acabou por vencer tão moço ainda esse grande apaixonado da vida, que foi José Lins do Rêgo.

A Academia Brasileira de Letras, que o acolheu prazeirosa na primeira vez que veio ele bater-lhe às portas, sofre hoje, como tanta gente, a dor da sua perda sem remédio. José Lins do Rêgo definiu-se ele próprio, certa vez, um homem igual aos outros. Mas não o era tal. Na floresta imensa em que procurou nivelar-se com a simplicidade e a modéstia do seu feitio, ele foi um ipê frondoso e florido que ruiu abrindo um vazio em derredor.

Nossas lágrimas caem sobre o seu féretro com a dor que ora nos acabrunha e nosso pensamento o acompanha no crepúsculo desta hora derradeira com a ufania de havê-lo tido na nossa companhia, grande, venturoso e bom.


* Advogado e jornalista, membro da Academia Brasileira de Letras.

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